São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O diabo riu por último

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Às vezes eu acho que a publicidade é a extrema-unção do modernismo. Ela vem rezar no ouvido moribundo dele tudo aquilo que ele criou, cochichando, minuciosamente, detalhes do estado de consciência que ele desenvolveu e que, eventualmente, irá sufocá-lo. Só que ela o faz com a voz de um diabinho sacana. A publicidade se ergueu com pernas emprestadas de todas as artes e filosofias, mas hoje existe e o faz glamourosamente, dando a última gargalhada. Seu processo de gestação foi incrivelmente inescrupuloso, amoral e sem remorsos, assim como deve ser a gestação de um vírus.
Unida ao princípio de "vender" algum produto, a publicidade validava sua estadia no planeta por meio da objetividade de seu resultado. Ao contrário do "purismo" utópico dos artistas, seu mecanismo de sobrevivência foi absolutamente antiético, usando o que tinha que usar, verdade ou mentira, afirmando seja lá o que fosse. O final da década de 70 nos trouxe a "antipublicidade", ou aquela que sacaneava os próprios princípios. Via-se que até ela estava criando um "estado de consciência" crítico, seguindo a trilha das matérias mais "sérias", como arte e filosofia. Com isso, a publicidade incluía em seu pacote sintomas de um anticorpo.
Ironicamente, isso ajudou a complicar a difícil relação entre artista e publicitário, pois os galhos se uniam e os macacos não sabiam mais onde se pendurar. Seguindo a trilha moderna da tomada de consciência, a publicidade virou um interminável léxico de inversão de termos e significados. A ética e a individualidade viraram meros degraus numa longa escada que a publicidade usava para alcançar seu objetivo. Sou fã de primeira fila nessa divertida manipulação de interpretações. Por isso, fico pasmo quando reclamam da falta de ética nesse mecanismo que se transformou num puro "direito de apropriação.
Oliviero Toscani é genial! Ele fechou o mesmo círculo dentro da publicidade que Bob Wilson fechou no teatro, que Godard fechou no cinema e que Warhol fechou na pintura. Todos eles colocaram um basta na falsa inocência da arte e a "denunciaram", brincaram com ela, aceleraram seu processo de degeneração. Enxergaram a doença criada pelo domínio de uma verdade relativa dentro de suas profissões. Toscani é o primeiro a ter a coragem de denunciar, tão cruamente, essa doença. E o faz com ironia, fotografando a própria doença. Ela chega justamente em épocas em que a especialização atinge o seu cúmulo, destruindo tudo como o HIV, jogando uns contra os outros. Enfim surge um publicitário acusado por outros publicitários de "não publicitário". Não é à toa que ele escolheu fotografar o HIV em ação. Não se deve chamar de gênio todo aquele que consegue dizer, com uma simples palavra, dezenas de coisas ao mesmo tempo?
Acho engraçado quando vejo que são publicitários aqueles que reclamam "coerência", "verdade" e "ética" naquilo que estão dizendo. Ora! Enlouqueceram? Estão falando com quem? A publicidade jurava com sua mão direita sobre a bíblia da "idéia. Até o papa do expressionismo abstrato, Clement Greenberg, nos anos 50, reconheceu que a arte estava virando uma corrida pela identidade, ou por "uma boa idéia". Os publicitários exerciam essa corrida em grupos, sentados em volta de mesas, fumando incessantemente, desdobrando significados, trocadilhos e dados estatísticos. Os artistas o faziam sozinhos, pasmos na frente da tela. Todos em busca de "uma boa idéia", algo que os colocasse no mapa.
A antiga missão da arte de refletir sobre a humanidade, de projetar o interior pra fora, estava sendo substituída por uma cápsula, um comprimido passageiro, uma aspirina chamada "idéia". A "boa idéia" era tão boa que ela começou a habitar o cerne de todas as questões. Era tão boa que fez com que todos se olhassem no espelho e se sentissem com necessidade de criar. Alguns ficaram pra trás, no espelho, criando entediantes monólogos sobre a validade daquilo tudo, outros, fazendo ícones de si próprios, exibindo exuberância e versatilidade e se tornando inalcançáveis para o consumidor. Soa familiar?
Então, qual é a reclamação? Qual pacto foi quebrado? O do "bom gosto"? Warhol queria ser publicitário. Tinha "bom gosto". Sua tentativa de matrícula no Art Directors Club foi recusada. Razão: mau gosto. Warhol se lançou por meio da "arte". Sublinhou o mau gosto na beleza e o bom gosto na feiúra. Milton Glaser, desenhista, publicitário, num gesto de compaixão e ironia, incluiu em seus projetos algumas das idéias de Warhol, recusadas pelo Art Directors Club e foi premiadíssimo por elas. Em algum lugar tem sempre alguém dando uma gargalhada.
Na confusão entre arte e propaganda, a gargalhada deve acontecer em grego clássico. A relação entre elas é tão perversa quanto a trama de uma tragédia grega. Podem se enxergar membros da mesma família se amando, se odiando e se matando. O problema não está com o pai, nem com a mãe nem com os filhos. Está com os códigos de conduta. Quando dá curto-circuito, começa a matança. Os códigos que regem os tempos modernos são frutos da "inteligência" e não mais da intuição, da impressão e da ``naiveté".
A inteligência destila tudo; concentra, reduz, tira de proporção, descontextualiza. Raros são os momentos nos quais ainda vemos "guts", isto é, alma, coragem, cara-de-pau, ocupar o centro da arena com uma superposição de idéias que toca em tantas partes ao mesmo tempo que merece um estudo publicado em livro. As fotos de Toscani e a coragem da Benetton merecem ovação de pé.
A publicidade virou um mecanismo complexo de investigação de como e a que responde o ser humano moderno. Nesse sentido, entrou pelo mesmo beco que a arte moderna, parando de se influenciar por imagens e experiências reais e investigando os próprios mecanismos. Começou a se reproduzir por meio de padrões estritamente teóricos, baseados em questões ligadas a sua validade ou não validade. Apaixonou-se pela própria imagem. Toscani enxergou o excesso de poeira no narciso da publicidade e, como Godard ou Brecht, optou por um choque que vem de uma mudança térmica brutal.
Não há dúvidas de que a engenharia da modernidade está na crise dos cem anos. Esse aspecto também está impresso nas fotos de Toscani e talvez seja o mais chocante. Mas há nelas também uma enorme compaixão e uma espécie de "verdade" que o mundo da vaidade e da futilidade apagaram. No passado, era a arte a portadora dessa "verdade". Hoje, talvez a "boa idéia" tenha tornado invisível a fronteira entre ela e a publicidade. No futuro, as duas estarão perfeitamente mescladas.
O trabalho de Toscani foi fundamental no amadurecimento da publicidade, pois levou o espectador, ou consumidor, a manter uma relação "espiritual" com o produto. Toscani criou a ponte decisiva entre a publicidade e seu "estado de consciência". Nesse estado de vulnerabilidade, ela finalmente estará pronta para percorrer os mesmos caminhos suicidas da arte moderna.

Texto Anterior: O outro ramo da publicidade
Próximo Texto: MITO; HOMENAGEM
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.