São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Paraíso de hereges

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em fins do século 16, índios do Recôncavo Baiano se reúnem na região de Jaguaripe para formar o que é conhecido como uma ``santidade" -termo que, para resumir, indica um movimento religioso intenso, milenarista. A ``santidade de Jaguaripe", que data do começo dos anos 1580, fica rapidamente famosa, recebendo até comentários de um dos mais destacados jesuítas italianos, o padre Giovanni Bottero, bem conhecido dos estudiosos de filosofia política por ser o autor do termo ``razão de Estado".
Pois é esse movimento que Ronaldo Vainfas, autor de várias obras sobre as mentalidades no Brasil colonial, estuda nesta que foi sua tese para professor titular de história na Universidade Federal Fluminense. É inevitável tratar-se de um trabalho interdisciplinar, no qual se cruzam referências à sociologia, à antropologia, aos estudos religiosos e às várias espécies de história, desde a tradicional, que estabelece os fatos como ``verdadeiros", até a mais nova, que indaga o verossímil e a mentalidade. E os resultados são instigantes.
Sabe-se que, à época da descoberta, certos pajés, de quem não se sabia a filiação ou a origem, conhecidos como ``caraís", apareciam periodicamente, de aldeia em aldeia, pregando uma ``Terra sem Mal", na qual a caça e o alimento viriam espontaneamente ao índio, e onde não existiria qualquer espécie de sofrimento. Hélene e Pierre Clastres, para explicar esse fato, disseram que os selvagens reagiam a uma tendência de seus caciques a ampliar o poder: diante de uma exacerbação das chefias, os índios, anarquistas primitivos, apostariam no contrapoder religioso.
Vainfas, porém, considera insuficiente essa interpretação, porque ela descarta do profetismo qualquer elemento de resistência ao colonialismo português. E nada melhor para prová-lo do que essa estranha santidade do Jaguaripe, que não foi um movimento estritamente indígena, mas se viu acolhida nas terras de um poderoso senhor de engenho -Fernão Cabral de Taíde, que se dizia parente do descobridor- e teve adeptos em praticamente todas as camadas étnicas da colônia: índios, claro, mas também brancos e negros.
O sincretismo é o primeiro traço que salta aos olhos. Usam-se nomes religiosos tupis (variações em torno de Tupã), mas também os cristãos, porque o principal profeta é conhecido por "papa e seus líderes recebem nomes de santos ou mesmo de Mãe de Deus. Há inversões de sinais, típicas de movimentos contestadores, como a promessa de um rebatismo que apaga os sinais do batismo, mas se empregam igualmente símbolos cristãos, como a cruz -e é isso que atrai, para a santidade, a simpatia de dona Margarida da Costa, mulher de Fernão Cabral.
O principal nesta obra, porém, talvez seja a preocupação, que Vainfas tem em comum com outros historiadores de sua geração, como Laura de Mello e Souza, de indagar as ``fronteiras culturais". Há uma clara convicção de que estas são instáveis, lábeis, factícias. Séculos de ocidentalização nos acostumaram a opor, nitidamente, europeus, africanos e índios. Ora, o recorte entre eles não é fácil.
E talvez por isso, pelo menos a meus olhos leigos, as páginas mais interessantes do livro sejam as dedicadas aos mamelucos. Esses, mestiços de branco e índio, embrenhavam-se no ``sertão" (que na época significava a mata densa) numa complicada aventura, que podia visar à escravização do indígena e à busca de metais preciosos, mas também se voltava, às vezes, contra o português.
Com efeito, muitos mamelucos se tornaram canibais, fazendo em seus corpos as dolorosas tatuagens, que indicavam que haviam matado -e comido- prisioneiros de guerra. Aliás, a passagem cômica do livro, que até mereceria ir para o teatro ou o cinema, é quando, no processo de um desses mamelucos -Tomacaúna-, o inquisidor português, ignorando tratar com um antropógafo, insiste em perguntar por que em dias de jejum ele comia carne de caça, no sertão, em vez de abóboras, legumes ou favas...
Um jogo de várias culturas assim se produz, pelo qual os índios se apropriam de símbolos cristãos, modificando-os, para contestar o domínio colonial escravizador, enquanto os portugueses, em especial por meio do clero, lêem um movimento religioso como heresia ou expressão demoníaca. Por isso é tão importante a narrativa do movimento quanto a do processo inquisitorial, que ocorreu cinco anos depois e teve como principais réus os mamelucos e Fernão Cabral, traduzindo (e traindo) numa instância metropolitana vivências que obedeciam a uma lógica outra, a do colonialismo.
Aqui, finalmente, o requinte desta obra: o nível cultural não é aquele que apenas reflete conflitos que ocorreriam num plano mais ``sério" (por exemplo, a economia), mas é a esfera discursiva, na qual todos os conflitos se formulam e por isso mesmo ocorrem. Não temos aqui nenhum traço do simplismo que marcou as formas mais ortodoxas de tratar (ou destratar) a cultura. Esta aparece, como a religião nos livros de Christopher Hill, não como uma linguagem enganosa e superficial (a do ``ópio do povo"), mas como a consciência -bastante adequada- que uma época tem de seus conflitos.
Em nenhum momento Vainfas opera o duvidoso reducionismo paternalista que consiste em julgar, por uma suposta ciência nossa, uma inconsciência da época: a história da cultura assim aparece, não como o estudo dos efeitos ou dos enfeites, mas como a análise mais adequada para aquilo que há de fremente nos conflitos sociais do passado.

Texto Anterior: Pesquisa é a mais confiável
Próximo Texto: Matriarcas da grande cidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.