São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Contra o pedantismo

LUÍS CLÁUDIO FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar de suficientemente amplo e ironicamente vago para abarcar uma boa variedade de temas... e outros mais, o título ``Freud, Nietzsche e Outros Alemães", ainda assim, não faz completa justiça ao que o leitor encontrará nesta coletânea de artigos, ensaios e entrevistas de Paulo César de Souza.
Há uma presença de austríacos (Kraus, Wittgenstein) e de um notável ``austrianista" (Schorske), de um tcheco (Kafka), de dinamarqueses (G. Axel e Karen Blixen, cujos nomes estão associados à ``Festa de Babette"), de um italiano (Primo Levi) e de um francês (Louis Malle). A psicanálise, igualmente, está representada por outros nomes além de Freud: Melanie Klein, Dnald Meltzer e Bruno Bettelheim. Há, é claro, Nietzsche. Há, também, uma presença forte dos judeus, seja porque judeus eram ou são muitos dos autores contemplados ou seus principais personagens, seja porque o povo judeu como um todo lhe inspirou alguns dos mais tocantes escritos da coletânea -``Shoah", um longo comentário ao filme, com entrevistas sobre o genocídio, a que se segue o relato de sua visita a Auschwitz, e ``Uma Psicanálise do Nazismo", que é uma inteligente resenha das idéias do psicanalista alemão Alexander Mitscherlich, pouquíssimo divulgado entre nós. Há, finalmente, cinco poemas traduzidos, alguns do alemão (Brecht e Fichte), outros do italiano (Ungaretti e Pavese).
À exceção de um dos poemas, todos os demais trabalhos haviam sido publicados na imprensa paulista (Folha e ``Estado"), o que, no caso, atesta a qualidade literária a que pode chegar o jornalismo diário, quando é feito por quem tem amor à escrita e à leitura e goza de liberdade diante dos famosos ``manuais de redação", ainda que se queixe do pouco espaço que algumas vezes lhe ofereciam para evoluir.
Esta, seguramente, é a maior virtude da coletânea: Paulo César de Souza transita por temas, autores, filmes e livros de peso com a competência singela, mas tão rara, dos que sabem realmente ver (filmes e paisagens), ouvir (músicas e textos), conversar -como o atesta a qualidade das entrevistas feitas e dadas- e, por fim, mas principalmente, ler.
Não por acaso, alguns dos textos mais interessantes versam sobre a escrita: ``Freud Como Escritor", ``Uma Visita Aos Manuscritos de Freud" e a entrevista concedida a Carlos Graieb sobre a sua tradução de Nietzsche. Nela, PCS tem a oportunidade de trazer aos leitores de Nietzsche, que não têm acesso ao original alemão, algumas observações muito oportunas sobre o estilo do filósofo; observações que nos permitem uma penetração em sua filosofia, que vai além das idéias e conceitos abstratos. Em certos autores, e Nietzsche é um deles, esta aproximação estética, pela via do estilo, pode ser decisiva.
Também nos ensaios sobre a escrita freudiana, principalmente no que abre o livro, as apreciações sobre a língua alemã e sobre como Freud dela se apropriou, para ``nela" e ``dela" pensar a psicanálise, abrem-nos um campo de cogitações que nos levam da estrutura e da fabricação do texto até interessantes questões epistemológicas. Epistemológicas?
Perdão. Escapou. Realmente, quando se é um profissional da psicanálise ou da filosofia -ou do cinema, ou da música etc.-, é difícil escrever em português corrente. Sem dúvida, é o fato de PCS ser, ``apenas", um profissional das letras que lhe ajuda a ler e escrever sem a necessidade do grande esforço que nós -os especialistas- temos de fazer para escapar do pedantismo. Quando fazemos. Quando escapamos. Antes, éramos velhos pedantes, os bacharéis generalistas da cultura ornamental, empolados e prolixos. Depois, viemos nós, os novos pedantes da alta cultura especializada ou dos jargões mediáticos. Mediáticos? Escapou de novo.
É claro que sempre houve quem, ``especialista", escrevesse e falasse português no Brasil. Antonio Candido, Sérgio Buarque, sem dúvida, e mais, talvez, uma meia dúzia. Mas, como precisamos hoje de quem cultive o amor à língua, e, lendo, traduzindo e redesenhando livros de psicanálise, filosofia, ciências sociais, vendo e comentando bons filmes, entretendo conversas amenas e elucidativas com autores de relevo no campo da cultura internacional, possa contribuir para uma tarefa que está na ordem do dia: a de ir criando uma cultura brasileira em dia com o que se passa no mundo, mas que conserve nosso sotaque, nossa cadência, nossa música e, na medida do possível, nossas palavras e nossa gramática. E não falo aqui de uma fala supostamente ``culta" e arrevesada.
Ao contrário, é para uma fala coloquial de alguém sensível e cultivado, mas sem pedantismo nenhum, que estou pedindo maiores espaços. Como seria bom que nossos orientandos de mestrado e doutorado pudessem escrever sobre suas gravíssimas e profundíssimas questões com a naturalidade de Paulo César de Souza nos relatando suas intensas explorações dos textos de Freud e de Nietzsche e nos oferecendo generosamente uma parcela de suas experiências.

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