São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Um autor entre o espanto e o riso

JOSÉ GERALDO COUTO
DO ENVIADO ESPECIAL

Só dois escritores argentinos modernos têm obra comparável, em qualidade e importância, à de Adolfo Bioy Casares: Jorge Luis Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-1984). Ambos foram seus amigos e admiradores.
Como ambos, Bioy Casares cultiva o gênero fantástico e valoriza o humor.
Mas Bioy Casares não se confunde com nenhum dos dois. Ele se aproxima de Borges ao praticar uma escrita autoconsciente, concisa, exata. Mas se distancia do mestre e parceiro, ao permitir que o tema dos encontros e desencontros amorosos entre em seus relatos, povoados por personagens mais concretos e matizados psicologicamente que os de Borges.
Outra diferença entre Bioy e Borges é a ambientação das narrativas. As do primeiro -sobretudo depois de ``O Sonho dos Heróis"- têm geralmente uma localização precisa no tempo e no espaço, enquanto os relatos mais famosos de Borges são atemporais, ou quase, e de vaga geografia.
Por outro lado, Bioy Casares se distancia de Cortázar em pelo menos três pontos.
Em primeiro lugar, a temática política, cara ao autor de ``O Jogo da Amarelinha", nunca lhe interessou. Em segundo lugar, o fantástico de Cortázar costuma ter uma origem obscura e imprecisa, enquanto em Bioy o assombroso quase sempre tem uma explicação material, científica ou outra qualquer. (Há exceções: o conto publicado nesta edição é uma delas). Por último, Bioy nunca se permitiria o transbordamento lírico, subjetivo (de raiz surrealista ou romântica), presente em tantos escritos de Cortázar.
Herdeiro de Flaubert e Henry James, Bioy Casares manipula com extrema maestria os pontos de vista e os ritmos narrativos de um conto ou romance. Leitor assíduo de filosofia e estudioso de matemática, alimentou desde jovem uma paixão pelas estruturas lógicas e pelos jogos mentais.
Talvez por ter começado muito cedo -publicou seu primeiro livro, ``Prólogo", aos 15 anos-, também atingiu precocemente a maturidade.
Aos 25 anos, escreveu uma obra assombrosa: o romance ``A Invenção de Morel", qualificado de ``perfeito" por Borges. Nele, um fugitivo da Justiça vai parar numa ilha selvagem, onde passa a conviver com pessoas que manifestam um comportamento estranho, alheio e repetitivo. Descobre depois que se trata de projeções tridimensionais de uma máquina fantástica. É a ``realidade virtual", 50 anos ``avant la lettre".
Em seu livro seguinte, ``Plan de Evasión" (1945), o diretor de uma prisão, localizada também numa ilha, intervém no cérebro dos criminosos para alterar-lhes as percepções sensoriais e dar-lhes a impressão de liberdade. O resultado, obviamente, é monstruoso.
Para Bioy Casares, as utopias científicas e sociais resultam sempre desastrosas, e, depois da experiência do extraordinário, o indivíduo volta a sua posição de perplexidade diante do mistério.
Em ``O Sonho dos Heróis" (1954), Bioy dá uma guinada em direção à ``vida real": um jovem valentão vive ou pensa ter vivido um momento mágico no Carnaval de 1927 em Buenos Aires, depois de ter ganhado dinheiro em corrida de cavalos; três anos depois, em outro Carnaval, tudo se repete, e ele tenta em vão recuperar aquele momento mágico.
Depois dessas três obras-primas, Bioy Casares torna-se progressivamente um escritor satírico, como observou o estudioso Marcelo Pinchon Rivière. Nessa fase, que tem como marco o romance ``Dormir ao Sol" (1973), Bioy é o escritor maduro, irônico e cético, que mistura a sátira e o fantástico e que permite que este soe absurdo, sem explicação.
Dessa fase são as esplêndidas coletâneas de contos ``El Héroe de las Mujeres" (1978), ``Historias Desaforadas" (1986) e ``Una Muñeca Rusa" (1991).
(JGC)

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