São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Livro refaz trajetória do corpo de Evita

DENISE CHRISPIM MARIN
DE BUENOS AIRES

Um sucesso editorial está revivendo velhas chagas, mistérios e suspeitas dos argentinos que amargaram o desaparecimento do corpo embalsamado de Evita Perón ao longo de 16 anos.
Lançado há duas semanas, o livro ``Santa Evita" (Ed. Planeta, 398 pág.) está em sua quarta edição e figura como primeiro colocado nas listas dos mais vendidos no país. No total, 25 mil exemplares chegaram às livrarias.
Na capa, traz forte publicidade editorial -uma frase simples do escritor colombiano Gabriel García Márquez: "Aqui está, por fim, o romance que eu queria ler".
Mas o melhor dos seus atrativos está nas páginas impressas -o resultado de sete anos de investigações do jornalista e escritor argentino Tomás Eloy Martínez.
O autor registra o calvário percorrido pelo cadáver embalsamado de Evita, morta aos 33 anos, desde que foi retirado de uma redoma de vidro exposta na sede da CGT (Confederação Geral do Trabalho), em 1955.
Ao mesmo tempo, o autor reconstrói o mito da Evita viva, a atriz de má reputação que se tornou mulher do general Juan Domingo Perón (1895-1974) e que fascina e manobra as massas de trabalhadores nos anos 40 e início dos anos 50.
Diretor do Programa de Estudos Latino-Americanos da Rutgers University, em Nova Jersey (EUA), Martínez também é autor, entre outros, de ``O Romance de Perón".
Na último dia 24, Martínez recebeu a Folha em Buenos Aires. E revelou fatos que, por pudor ou horror, não mencionou no livro. Leia a seguir alguns trechos de sua entrevista:

Folha - Como começou sua investigação sobre o desaparecimento do cadáver de Evita?
Tomás Eloy Martínez - Uma noite, há sete anos, os militares que aparecem no último capítulo de ``Santa Evita" me telefonaram.
Disseram que havia erros graves no meu livro ``O Romance de Perón" e que queriam contar onde estivera o cadáver de Evita.
Eu me encontrei com eles em um café. Meu advogado, discretamente, acompanhou de outra mesa. Aqueles militares me deram a base da investigação.
Folha - Ninguém, anteriormente, havia escrito a respeito do desaparecimento do corpo?
Martínez - Foi uma obsessão para os jornalistas argentinos na década de 60. O corpo de Evita era um fragmento excluído da história da Argentina. Acredito que fui o único a tecer uma investigação sobre o tema.
O que sustenta o romance é o fato de que, depois da morte, a história de Evita tem a mesma intensidade, riqueza e intriga que quando estava viva. Os biógrafos, estranhamente, se detêm quando ela morre.
Folha - Evita, quando viva, sempre era tratada com expressões chulas, como ``égua". Por quê?
Martínez - Porque as pessoas não entendiam a posição de uma mulher forte e com poder.
Folha - Mais por preconceito que pela sua opção política?
Martínez - Sim. Incomodava que uma mulher tão ignorante, como ela era, tivesse tanto poder.
Folha - Ela era submissa a seu marido, Perón?
Martínez - Evita foi muito leal a Perón. Era filha ilegítima, muito pobre. Foi humilhada e lhe custou muito chegar até onde chegou.
Perón casou-se com ela, a legitimou. Era absolutamente revolucionário para a época um militar se casar com uma atriz de má reputação. Isso a leva a ser infinitamente grata a Perón.
Folha - Por que foi importante para o governo argentino desaparecer com o corpo de Evita?
Martínez - Em 1955, quando Evita estava morta havia três anos, os militares destituíram Perón da Presidência da República.
Seu governo havia se deteriorado e ele se distanciara de suas tarefas. O único símbolo forte que restava ao peronismo era o corpo de Evita.
Folha - Perón queria, do exílio, utilizá-lo?
Martínez - Sim.
Folha - A posse desse corpo era disputada?
Martínez - No governo, todos o queriam. Alguns, para destruí-lo. Outros, para enterrá-lo. A Marinha queria jogá-lo no fundo do mar. Outros queriam cremá-lo.
Folha - E quanto aos peronistas?
Martínez - Eles queriam, com o corpo, sublevar o país. Diziam que Evita iria guiá-los ao triunfo.
Folha - O médico que embalsamou o corpo de Evita se apaixonou por sua obra?
Martínez - Ele não queria terminar de embalsamá-la. Insistiu em continuar o trabalho por três anos.
Folha - Outras pessoas se apaixonaram pelo corpo?
Martínez - O major Arancibia, por exemplo. Ele o guardou em sua casa por meses. E matou sua mulher, grávida, por causa da paixão pelo corpo de Evita.
Folha - Comenta-se que o corpo teria sido violado sexualmente. Essa história é verdadeira?
Martínez - Tentaram violar, mas não conseguiram. O corpo está rígido. Eles não puderam abrir as pernas dela.
Folha - Como garante isso?
Martínez - Os militares me contaram. Um coronel, personagem do livro, ordenou a seus subordinados que violassem o corpo.
No romance, eu mudo o fato. Menciono que a ordem era apenas para urinar sobre o corpo.
Folha - Por que o senhor alterou essa história?
Martínez - Porque me soou terrível. Era um ato tão extremo que achei que urinar sobre ela ou a violentar seria o mesmo. Qualquer humilhação é terrível.
Folha - O senhor deixou de contar outras histórias?
Martínez - Sim. Entre 1935, quando chega a Buenos Aires, e 1944, quando conhece Perón, Evita namora com um homem por mês. Contar esses amores não acrescentaria nem diminuiria nada.
Folha - Perón nunca reclamou o corpo de sua mulher?
Martínez - Não. Em 1970-71, o governo argentino queria neutralizar as guerrilhas que atuavam em nome de Perón, que ainda estava no exílio.
Tinha três maneiras para fazê-lo: entregando os soldos atrasados de Perón, seu passaporte e o corpo de Evita. Ele não poderia rejeitar o corpo de sua mulher.
Mas há uma história que não está contada no romance. Perón mandou à Itália um grupo para resgatar o corpo de Evita, que chegou depois dos militares enviados pelo governo argentino.
Ele fez isso para não dever nada ao governo militar e para não aceitar nenhuma forma de negociação.
Folha - A mãe de Evita foi a única a reclamar o corpo?
Martínez - Foi. Ela ia todos os dias aos órgãos públicos, batia nas portas e pedia para lhe contarem onde estava o corpo da filha. Morreu sem obter a resposta.
Folha - O que aconteceu ao corpo durante o regime militar de 1976?
Martínez - Em 1971, Evita foi devolvida a Perón. Só em 74, já na Argentina, ele mandou buscar o corpo na Espanha e o enterrou na quinta de Olivos.
Perón morreu pouco tempo depois e também foi enterrado ali. Quando os militares tomaram o poder, concluíram que o corpo de Evita era perigoso e mandaram enterrar no cemitério da Recoleta.
Nesse momento, o caixão de Evita estava vedado com três placas de aço de dez centímetros de altura e com fechaduras de segurança. Não se pôde mais vê-la.
Folha - É verdade que o corpo foi utilizado em rituais?
Martínez - Em ``O Romance de Perón", registrei as práticas necrofílicas que ocorreram na casa de Perón, nos anos 70, quando ainda estava exilado na Espanha.
López Rega, seu secretário e guarda-costas, era umbandista. Ele punha o corpo de Evita em uma cama e fazia Isabelita deitar-se ao lado. Com rituais, tentava passar a alma de Evita para Isabel.
Folha - Havia uma suposta "maldição atribuída aos que se envolviam com a ocultação do corpo?
Martínez - Só espero que não caia sobre mim. As pessoas que levaram o corpo de um lado ao outro sofreram desgraças.
O coronel que ordenou que a violassem ficou louco. O oficial que levou o corpo à Europa teve um problema seriíssimo.
Folha - Os argentinos têm fixação pela morte?
Martínez - Sim. Vou contar a pior história que conheço. Em 1841, um líder argentino, Marco Manuel de Abillanera, foi decapitado. Teve sua cabeça cravada em uma lança e exposta em São Miguel de Tucumán. Uma mulher teria então dormido com a cabeça ungida em óleo por 30 anos.

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