São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Cultura popular: preconceito e violência

BENEDITA DA SILVA

Expressão musical dos jovens das comunidades populares, o ritmo funk se expande e conquista também a preferência da juventude da classe média. Em nosso Estado (RJ), somente nos fins-de-semana, cerca de 1,5 milhão de jovens frequentam os bailes funk.
Com grandes tiragens de discos e um programa de televisão líder de audiência em seu horário, o funk se transformou, inegavelmente, num fenômeno cultural da juventude. O movimento funk é um meio para os jovens expressarem linguagem e símbolos próprios e, também, para manifestarem suas críticas sociais e vontade de participação.
Vendo seus filhos aderirem ao funk, a sociedade tradicional reage com preconceito e exige das autoridades medidas repressivas. Um exemplo típico dessa atitude discriminatória está numa carta publicada em grande órgão de imprensa, em que uma mãe diz o seguinte: ``Meus filhos e os filhos de minhas amigas e vizinhas estão sendo envolvidos, já começam a achar tudo muito lindo, o morro é uma beleza". Por causa disso ela afirma que o funk ``...é uma questão de segurança nacional".
O que se vê nessas opiniões é o preconceito elitista contra a mistura de classes sociais e raças, que é um fenômeno sociocultural muito importante para o fortalecimento da tolerância e da convivência democrática. Mais uma vez se confirmam o conservadorismo extremado e a miopia política das elites brasileiras, os maiores obstáculos para o desenvolvimento democrático do país.
Mas, enquanto o funk é considerado por setores conservadores uma ``ameaça" à juventude, o desemprego e a falta de oportunidades no mercado de trabalho causam frustração e desespero entre os jovens. Essa sim é uma situação que ameaça o futuro da juventude.
Do mesmo modo, quando a Petrobrás e outras empresas estatais rentáveis e estratégicas são atingidas, isso não é considerado uma ameaça à segurança nacional, mas apenas uma questão de ``modernidade". Vivemos um dos momentos mais tristes de nossa história, quando o orgulho nacional é ridicularizado, a juventude é abandonada e o povo é considerado como um mero detalhe ou mesmo como um problema.
O funk vive um momento de preconceito e repressão, do mesmo modo que, no passado, também viveram outras formas de cultura popular, como o samba e a capoeira, por exemplo. Mas, como estes últimos acabaram triunfando, a vitória do funk será igualmente inevitável. Não se pode matar uma cultura.
É um erro grave querer combater o tráfico de drogas por meio da proibição dos bailes funk. Na atualidade, esses bailes mobilizam a juventude e representam a sua principal forma de lazer.
Já o narcotráfico é um problema de segurança pública e está presente não só nos bailes funk como também nos eventos do samba, do rock, nas casas noturnas da zona sul e em muitos outros lugares aparentemente insuspeitos. Sem uma vontade política séria que combata a corrupção policial e mobilize a sociedade, o narcotráfico continuará disseminando o seu mal, mesmo que se acabe com todos os bailes funk da cidade.
A discriminação contra o funk, como a realidade está mostrando, só vai aumentar a repressão policial contra os jovens e alimentar ainda mais as manifestações de violência em seu meio. O caminho tem de ser outro, com os poderes públicos regulamentando e apoiando o funk como manifestação cultural, abrindo os clubes para os seus bailes e não proibindo, como fazem até agora.
A sociedade e os poderes públicos têm a obrigação de ganhar a nossa juventude para a atividade cultural e um lazer sadio, e não empurrá-la para os guetos da violência. O funk precisa ser tratado com tolerância e compreensão, pois, afinal de contas, ele é um movimento cultural criado por nossos filhos.
Quanto ao crime organizado, este tem de ser combatido com firmeza e competência onde quer que atue, não apenas nos morros, mas, principalmente, no asfalto, onde se encontram as suas fontes e seus protetores.

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