São Paulo, domingo, 30 de julho de 1995
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Jatene abre o coração

RICARDO KOTSCHO

Jatene abre o coração

"O brasileiro tem uma cultura autoritária. Ele está pouco habituado ao debate democrático"
Ao entrar numa sala do Programa de Imunizações, no terceiro andar do anexo do Ministério da Saúde, onde fica a Fundação Nacional da Saúde, sentiu um estranho mau cheiro. Quis logo saber como é que as pessoas podiam trabalhar naquele ambiente com forte perfume de estábulo. Uma funcionária lhe explicou que se tratava de infiltração no forro. Já haviam encaminhado vários expedientes solicitando providências da manutenção, mas... Com Jatene não tem mas. Mandou buscar uma escada, trepou pessoalmente na dita cuja, arrancou o forro de alumínio com suas valiosas mãos de cirurgião, descobriu o local do vazamento e deu ordens para que o conserto fosse feito imediatamente.
O coleguinha Adib
A insólita cena só não surpreendeu o epidemiologista Edmundo Juarez, presidente da Fundação Nacional de Saúde, que se diverte há muito tempo "com esse cara, meu coleguinha Adib". Afinal, os dois são unha e carne desde 1948, quando entraram juntos na Faculdade de Medicina da USP. Os dois têm 66 anos, vieram de famílias muito humildes e se transformaram em papas nas suas especialidades. Mas as semelhanças terminam aí. O ministro Jatene é alto (1m86), está sempre sério, só pensa em trabalhar e faz da campanha contra o fumo uma das suas cruzadas. O amigo Juarez é baixo, diverte-se o tempo todo com tudo e fuma um cigarro atrás do outro. Um deles, o ministro, sobre de diabete, o outro, não.
"O Adib é um cara diferente". "Não estou dizendo que ele é melhor ou pior do que os outros, mas apenas que é diferente de todo mundo que conheço. É de uma tenacidade incrível em busca de seus objetivos, uma coisa estupenda", diz Juarez, com a autoridade de quem acompanhou a carreira do colega que veio de Xapuri (terra de Chico Mendes e Jarbas Passarinho), no Acre, desde seus primeiros desafios na faculdade, passando pelos bailes do "Totó e Orquestra Colúmbia, no Ginásio do Pacaembu. Foi seu anestesista nas primeiras cirurgias no Hospital das Clínicas e trabalhou com ele na Secretaria da Saúde de São Paulo, sua estréia em governo, nos anos 70. Depois, o acompanhou na sua primeira passagem pelo Ministério da Saúde, no governo Collor, e lá está ele, novamente em Brasília, divertindo-se "com esse cara diferente".
Uma quase unanimidade
De fato, trata-se de um personagem absolutamente estranho nesta selva do poder federal acampado em Brasília. Prestigia os funcionários de carreira (levou apenas Juarez e mais meia dúzia de especialista para seu" staff"), defende o serviço público e confia no Congresso Nacional para conseguir os recursos de que precisa, na contra-mão dos modismos em voga na República liberal-tucana. Desaforos responde no ato, não cede em princípios, nem tem medo de perder o emprego. Jura de pés juntos que não quer ser mais nada na vida, além do que já é. Com isso, conseguiu ser respeitado tanto pelo presidente da República como por seus subordinados, por jornalistas sérios e políticos de todas as latitudes, de ACM a Lula, passando por garçons e motoristas de táxi - uma quase unanimidade nacional. O que ele tem de diferente?
Para começar, é o único ministro que não abandonou sua profissão de origem ao voltar para o governo. Pode ser às segundas ou às sextas-feiras, mas o ministro Jatene não passa uma semana sem entrar numa sala de cirurgia do Incor para praticar seu ofício. É sua forma de relaxar das agruras da vida pública. Espartano, quando está em Brasília mora sozinho num apartamento standard do pouco estrelado Hotel da Torre. Paga as despesas do próprio bolso. Se volta tarde do ministério, quase sempre depois das dez da noite, contenta-se com um prato de coalhada árabe.
Antes das seis da manhã, está de pé. O dia ainda não clareou quando inicia sua caminhada pelo clube do Exército. Volta ao hotel, toma café (geralmente sozinho, desde que Edmundo Juarez se mudou para o apartamento funcional) e, às 7h30, religiosamente, já está em seu gabinete. Aí começa uma maratona de 10 a 12 audiências por dia para tratar de todas as doenças nacionais - principalmente, a falta de dinheiro. Almoça lá no ministério mesmo, encanando a fila do bandejão, para comer a R$ 7,90 o quilo, com direito a suco e sobremesa. Todo dia aparece gente que não está na agenda, "só para trocar uma palavrinha com o ministro". Ninguém sai sem ser atendido - ainda mais, se for parlamentar, por razões que ficarão claras mais adiante.
Angélica de microvestido
No dia do encontro com a reportagem da Revista da Folha, marcado para as oito da noite, apareceu um casal "fora da agenda", que atrasou ainda mais a maratona. Era a cantora Angélica, de micro vestido preto, acompanhada do senador Júlio Campos (PFL-MT), presidente interino do Congresso Nacional, oferecendo-se para participar de campanhas educativas do ministério. Apesar da hora tardia e de um irritante resfriado, que insistia em fazê-lo espirrar, o ministro ainda estava com a corda toda quando finalmente nos recebeu para a última audiência do dia.
Nem esperou a primeira pergunta. Suas mãos não param quietas. Fazem um permanente balé sobre a mesa, dobram e picam papéis, como se seu dono estivesse fazendo uma permanente cirurgia do coração imaginário, o dele. Dá a entender que já sabia do que o aguardava -os jornalistas lhe fazem sempre as mesmas perguntas, que se resumem a uma só, ultimamente: aonde este Jatene que chegar?- e foi logo fazendo um desabafo sobre "a cultura autoritária do brasileiro, pouco habituado ao debate democrático".

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