São Paulo, quinta-feira, 3 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Assassinato da alma russa

SAULO RAMOS

É preciso ir e ver. Meninos, eu fui e vi. A Rússia não existe mais, isto é, existe, mas não há possibilidade de se definir o que está existindo naquele doloroso vazio de vontades e destinos.
Na história da humanidade, o comunismo constituiu uma devastação diferente: a pobreza e a miséria são diferentes das dos países capitalistas. Nestes, tais situações revoltam pelo contraste com a riqueza injustamente distribuída, mas existente para alguns. O que, de certa forma, mantém a esperança de acesso dos mais pobres à condição de menos pobres por meio das conquistas sociais mínimas nos sistemas econômicos que as permitem, sob pena de perecerem como sistemas.
Na Rússia nem isso acontece, porque a pobreza é absoluta, socializada, sem confronto com minoria rica, que não existe, a não ser a que já se formou por meios mafiosos, primeiro estágio do capitalismo nascente naquele país, mas que está sendo investida no exterior, em bancos suíços e imóveis na Côte d'Azur.
No regime comunista, tudo era tarefa do Estado, que, preocupado com o ``bem-estar" do povo, dedicou-se a construção de satélites e armas nucleares, estudos de radioatividade e outras tecnologias não aplicadas a material de consumo público. Não fabricou nem permitiu que se fabricassem escova de dentes, pasta dental, papel higiênico, coisas supérfluas, próprias da sociedade de consumo. Mas o povo precisa mais dessas chamadas bugigangas para sua vida do dia-a-dia do que saber que seu país domina a energia atômica.
Se o Estado fabricava sapatos iguais para todos, não podia impedir as unhas encravadas, os defeitos nas solas dos pés, ou dos próprios pés, que demandavam calçados especiais, ou simplesmente mais macios, que somente a concorrência industrial pode diversificar.
Não houve, por exemplo, interesse na industrialização de materiais de construção, que o Estado padronizou para os prédios, todos estatais. Hoje, as pessoas tentam abrir um pequeno restaurante, ou de preferência bares, mas não há material para banheiro, pia, torneira. Não há nem sequer o tradicional W.C., coisa da iniciativa privada, trocadilho que somente vale para a língua portuguesa.
Em algumas cidades do interior, quando o freguês de um bar precisa de um W.C., o proprietário lhe oferece gentilmente um jornal ou um papel qualquer, que deve ser devidamente usado para embrulhar e jogado em local reservado a esse tipo de dejeto.
Nos portos, os velhos navios enferrujados jamais tiveram a tradicional mãozinha de tinta, pois não há tinta, nem pincel, nem mãozinha. Nas cidades, os bondes caindo aos pedaços ainda funcionam por milagre, emendados literalmente com arames, blocos de ferrugem ambulante. O motorneiro, nos desvios, desce com a alavanca de ferro para mudar as guias dos trilhos, tal como faziam nossos motorneiros no começo do século. Com uma diferença: nossos trilhos (ou da Light) tinham graxa. E pensar que os russos usam controle remoto para os satélites! Que se danem o povo e o motorneiro.
Comoveu-me ver um operário que trabalhava na reparação de uma parede de museu, completamente maltrapilho, sapato furado, usando um martelo de cabo de madeira lascada e um formão enferrujado, trepado numa escada mambembe, sem segurança para ele e sem seguro para o tombo. Durante muito tempo o trabalhador soviético foi propagado como exemplo da felicidade completa e da perfeição do operariado. Era para ter sido, mas não foi.
Em São Petersburgo, antiga Leningrado, que, por sua vez, era a antiga São Petersburgo, senhoras idosas vendem nas portas dos museus cartões postais horríveis, mal impressos, em geral poloneses. Minha filha simpatizou-se com uma delas e desceu do ônibus com uma nota de US$ 1 na mão. Parecia um miolo de pão num tanque de lambaris.
Todas as velhinhas correram ao seu encontro. Mas ela deu o ``money" àquela que lhe pareceu mais sofrida e voltou correndo para o ônibus. A senhora, andando com dificuldade, foi até o nosso coletivo, chamou minha filha e deu-lhe todos os cartões postais que tinha para vender. Não era mendiga, era comerciante. Fez questão de agir com dignidade. E, na sua avaliação, todo seu estoque de mercadorias valia US$ 1.
É muito triste ver que a Rússia voltou a viver uma época anterior à de Tolstoi. O Estado comunista realmente acabou com a mentalidade de consumo, deixando de fabricar e produzir as inutilidades burguesas como manteiga e margarina, biscoitos, agulhas, ferros de passar, aspirina, diversidade de queijos e, na vodca, perdeu em qualidade para a Polônia e para a Finlândia.
No novo regime, dito de abertura, ninguém se atreve a fabricar coisa alguma, pois não tem certeza de que haverá consumidores, primeiro porque o povo não está acostumado a consumir, segundo porque não tem dinheiro para nada, uma vez que não há emprego em lugar algum. Para ser instalada naquele país, a economia de mercado levará mais de cem anos.
Como aconteceu com o resto da humanidade, a liberdade econômica tonteou os inocentes e, num primeiro momento, estimulou os ladrões, bandidos, traficantes e contrabandistas, atividades matriciais do sistema capitalista, isto é, a busca de riqueza pelos meios ilícitos mais rápidos e rendosos.
O capitalismo inglês começou com as piratarias nos mares, os bucaneiros. O americano começou com os assaltos aos trens e aos rebanhos dos criadores de gado. E progrediu com os gângsteres de Chicago. O europeu, com as máfias.
Depois vieram as prevalências das leis, mas a ordem jurídica demandou muitos anos, muito sangue e vontade social para ser implantada. Até hoje vive em luta contra o crime, cujo maior incentivo está no regime democrático de direito das liberdades individuais, preço caro, mas que pagamos às prestações durante os últimos séculos de capitalismo. E continuaremos a pagá-lo, pois é preferível viver em combate contra o crime a perder o bem fundamental da vida humana: a liberdade.
A Rússia de hoje tem dificuldade mercadológica até para propiciar o desenvolvimento do crime, pois não há consumidor com poder aquisitivo para os produtos traficados.
Se fossem para lá deportados, os sequestradores cariocas morreriam de fome, pois não há ninguém com recursos para pagar resgate, não há empresário. Essa fase inicial e pior do sistema capitalista, a da delinquência, ali se dá de dentro para fora, com o roubo e venda de bens do velho Estado, tecnologia nuclear, minérios atômicos enriquecidos e quinquilharias como ouro e petróleo.
Está-se tentando algo no turismo. Uma pequena indústria fabrica e o incipiente comércio vende, além das ``matriochas" e ícones, japonas, capas e gorros dos antigos oficiais militares soviéticos, com as plaquinhas temíveis -estrela vermelha, foice e martelo. Tal como os alemães fazem hoje com as insígnias nazistas. Comprei um gorro. Espero proteger a cabeça no inverno de Serra Negra, sem assustar ninguém.
Outra atividade turística rendosa, plena de ironia, é a exploração de visitas de estrangeiros aos museus russos, todos em palácios dos antigos czares, e que exibem obras de arte de propriedade da velha nobreza, em grande parte responsável pela Revolução de Outubro. Do Estado soviético nada ficou para ser visitado materialmente, isto é, visto, apalpado, fotografado, a não ser o navio Aurora, no porto de São Petersburgo, e que, aliás, pertencia à marinha do último czar.
Mas, para os que conseguem falar e entender russo, o Estado soviético deixou um povo sem nada na alma, nos desejos, nas ambições, na luta pelo próprio destino. Segundo os fiéis intérpretes com quem conversei, o assassinato mais grave deu-se, nos 80 anos de comunismo, na mentalidade e sentimento dos russos.
O que antes de 1917 era poesia, música, balé, vontade e alegria de viver, mesmo diante das atrocidades do regime czarista, hoje ainda é medo da polícia, desinteresse pelas coisas da vida, um vago esforço limitado à comida de cada dia ou à extravagância de um refrigerante estrangeiro. O resto é afogar-se em vodca, povo e chefões e vender todo o pobre estoque de bens por US$ 1.
Nero, Átila, Hitler assassinaram pessoas, roubaram a vida de milhões de seres humanos, mas os sobreviventes reconstruíram os bens e as terras devastadas. O comunismo, por ter durado muito tempo, além dessas mesmas e macabras proezas, assassinou a alma dos que sobreviveram, roubando-lhes, depois de várias gerações, a vontade de reconstruir o que não conheceram.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

Texto Anterior: TOMA LÁ, DÁ CÁ; MINHA TERRA TEM PALMEIRAS; NA VOLTA DAS FÉRIAS
Próximo Texto: "Revanchismo"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.