São Paulo, quinta-feira, 3 de agosto de 1995
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Servidão humana

OTAVIO FRIAS FILHO

Esta é uma época individualista, dizem. As psicoses coletivistas, tão vistosas pela memória do fascismo e do socialismo, foram superadas. Prevaleceu a atração pelo que é concreto, imediato, particular, de forma que cada indivíduo está outra vez encerrado na única realidade que existe para ele, a do seu próprio interesse.
Perdemos em solidariedade o que ganhamos em eficiência, cedemos em matéria de utopia o que lucramos em sinceridade nua e crua. Os laços de classe, de gênero sexual, de pátria se desfazem, e cada um está isolado, à deriva dos outros. É uma espécie de hora da verdade.
Mas pode ser enganoso supor que essas condições libertaram o indivíduo e vão propiciar, como no sonho americano, o direito pessoal de ``perseguir a felicidade". Ao contrário, é provável que o indivíduo esteja ``livre" apenas porque não é mais necessário aprisioná-lo na ideologia, no território, na língua e na crença dos pais.
Nunca é demais recordar a repressão maciça que é necessária para fazer de uma pessoa um indivíduo: da infância à velhice, da escola ao trabalho ele é normalmente mantido em verdadeiras colônias penais sob regime semi-aberto. Mas essa repressão se abranda conforme suas necessidades são introjetadas em cada pessoa.
Existe uma economia secreta entre esses vasos comunicantes, um jogo de soma-zero no qual mais repressão no plano público implica mais liberdade no plano pessoal, e vice-versa. Assim, só se é livre (para escolher, para dizer sim ou não) sob uma ditadura. Da mesma forma, ninguém precisa de um Hitler se cada alemão passa a ser hitler para consigo e seu vizinho.
Agora estamos contentes porque somos donos, parece, do próprio nariz. Acessamos a Enciclopédia Britânica e a pizzaria mais próxima pelo computador, trabalhamos em casa, até no sexo estamos isolados dos outros por uma membrana. A linha de montagem, a parentela, os internatos e os exércitos, todas as formas de socialização compelida estão obsoletas.
Deveríamos desconfiar dessa ``liberdade" desde logo porque ela não impõe nenhuma contrapartida, nenhum sacrifício da nossa parte, mas se deixa arrastar pela lei do menor esforço, enquanto acena com uma ampliação sem precedentes da fantasia de que é possível abraçar o mundo com as pernas, como diz o provérbio.
Do lado da empresa, que se prepara para substituir Estado e escola, as exigências recaem com mão de ferro sobre o indivíduo submetido à carnificina da competição sem limites. Pelo lado do consumo, um padrão unificado sob a falsa diversidade da propaganda determina que cada consumidor é um átomo idêntico ao outro.
Tudo são equivalências. Assim como ninguém é agressivo ou tímido, terno ou cruel, alegre ou melancólico, mas sempre todas essas coisas em diferentes medidas conforme cada momento, do mesmo modo nenhum indivíduo pode ser livre sem que a essa liberdade adquirida corresponda alguma forma, ainda oculta, de servidão.

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