São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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O Brasil face à globalização

LUCIANO COUTINHO

É preciso despojar o conceito de "globalização" de seu conteúdo ideológico, isto é, o de um mundo sem fronteiras econômicas, frente ao qual todos os países deveriam se submeter abrindo incondicionalmente as suas economias.
A globalização é uma etapa recente (pós-80) e mais avançada do processo de internacionalização da economia mundial, caracterizada pelos seguintes pontos:
a) pela aceleração da mudança tecnológica (3ª Revolução Industrial) nas economias centrais, sendo este processo heterogêneo e desigual, de tal forma a reiterar os desequilíbrios comerciais e a afirmar cada vez mais o policentrismo econômico;
b) pela reorganização dos padrões de gestão e de organização da produção, combinando os movimentos de globalização e de regionalização (formação de blocos econômicos);
c) pela ausência de um padrão monetário mundial estável (crise do dólar), no contexto de taxas cambiais flutuantes, com crescente especulação com as paridades das moedas e desenvolvimento de mecanismos de "hedge" (derivativos), que, entretanto, não são capazes de prevenir rupturas e crises;
d) pelo aumento da concentração das estruturas de mercado (número crescente de oligopólios mundiais) e da concentração da propriedade global, por meio das fusões e dos investimentos cruzados internacionalmente. Isto é, aumentaram os investimentos externos entre e dentro dos países desenvolvidos, inclusive por novos atores, tipo fundos de pensão, intensificando a interpretação patrimonial dentro do capitalismo avançado;
e) pela integração global dos mercados de câmbio e de títulos financeiros (especialmente títulos públicos e papéis securitizados de grandes empresas), movimentando US$ 1 trilhão por dia nos mercados "spot" de câmbio, de um estoque de riqueza financeira que alcança mais de US$ 25 trilhões.
Este é o conteúdo que se deve atribuir rigorosamente à globalização. Diante dela, não resta dúvida de que os Estados nacionais perderam estatura e força. Mas isso não deve levar à conclusão de que é melhor curvar-se às tendências, cedendo passo aos grandes interesses capitalistas, no sentido da liberdade total de movimentação de capitais, privatização selvagem, aquisição de ativos, abertura comercial.
Para os países em desenvolvimento a globalização tende a apresentar mais riscos do que oportunidades. Mas, para evitar os riscos e agarrar as oportunidades, é preciso ter coesão, estratégia e Estado eficiente.
O Brasil encontra-se particularmente fragilizado em face da globalização. O longo período de crise econômica agravou certas debilidades estruturais e desorganizou profundamente o Estado, que perdeu a capacidade de ordenar a economia e financiar minimamente o desenvolvimento. Vejamos.
1. Enfraqueceu-se a capacidade competitiva da indústria em todos os setores complexos de alto valor agregado e elevado conteúdo tecnológico, substituindo apenas a competitividade das cadeias produtoras de commodities de baixo valor agregado, intensivas em recursos naturais, insumos agrícolas e energia.
2. Inviabilizou-se o avanço da concentração econômica, de tal forma que nossos grupos empresariais privados são estrategicamente débeis e relativamente pequenos para atuarem como atores globais.
3. A profunda regressão da base doméstica de financiamento de longo prazo, associada ao círculo vicioso do giro curto da dívida mobiliária, onera o Tesouro, encarece os custos de capital e obriga à dependência de recursos fiscais ou de endividamento externo para sustentar uma eventual aceleração da acumulação de capitais.
O Plano Real, ao ter derrubado a hiperinflação, parecia ter reaberto o caminho para o desenvolvimento sustentado. Os grandes grupos empresariais já vislumbravam planos de investimento de grande escala. Infelizmente, porém, a forte sobrevalorização da taxa de câmbio, combinada com juros muito elevados e consolidação do movimento recessionista, tendem a frustrar as expectativas e a inviabilizar a superação das fragilidades. Em vez de fortalecer, esta opção básica de estabilização tende, infelizmente, a fragilizar ainda mais o Brasil face à globalização na medida em que provoca:
1. crescente vulnerabilidade de financiar um elevado déficit em transações correntes com a entrada de capitais de perfil relativamente curto;
2. fragilização do desempenho comercial expresso no risco de redução do superávit para um patamar inexpressivo com a economia desaquecida;
3. dificuldade em retomar o crescimento econômico acelerado em face dos condicionantes acima e considerando que a distorção das condições de competitividade industrial (dada a combinação câmbio sobrevalorizado-juros altos) inviabiliza o futuro de grande número de setores/atividades.
Este panorama realista das atuais condições do Brasil face à globalização não constitui, porém, uma fatalidade imutável. O Brasil possui energias e potencialidades para optar por outra rota. O programa de estabilização pode ser reorientado para assentar-se num novo eixo de desenvolvimento estabilizador. Reformas podem ser empreendidas e as vulnerabilidades podem ser reduzidas com um projeto de desenvolvimento industrial. Tudo isso exigiria, porém, a compreensão de que a globalização não é um fenômeno espontaneamente benigno para os países em desenvolvimento da periferia.

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