São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Esquerda e direita em tempos de burrice e de esperteza

REINALDO AZEVEDO
EDITOR-ADJUNTO DE POLÍTICA

Em tempos de macarthismo circense -quando os ``inteligentes" dos segundos cadernos se dedicam a reescrever a história com a purulência de seus tropos e fantasias-, um livro que não se limita a justificar o presente, mas a interrogá-lo, merece saudação. É o que faz Emir Sader em ``O Anjo Torto - Esquerda (e Direita) no Brasil", editado pela Brasiliense.
Seu melhor público será o secundarista ou universitário dos primeiros dias, interessado nas linhas gerais do pensamento de esquerda e de direita e na forma como o Brasil emprestou cor local a disputas que ditaram, em muitos momentos, os destinos de todos nós.
``O Anjo Torto" não tem grandes pretensões e se sustenta num truísmo: esquerda não é direita, e direita não é esquerda.
Ó tempos, ó costumes! Se um truísmo tem de ser demonstrado, o vencedor já não se contenta em fazer pender a espada sobre o vencido, mas pretende ainda erigir o monumento de sua vitória sobre os despojos do outro. Quer deixá-lo pobre de verdade.
``O Anjo Torto" segue a trilha de ``Direita e Esquerda", do italiano Norberto Bobbio, que observa: ``Quem acredita que as desigualdades são um fatalismo, que é preciso aceitá-las (...) sempre esteve e estará à direita, assim como a esquerda nunca deixará de ser identificada nos que dizem que os homens são iguais, que é preciso levantar os que estão no chão".
Sader reconstitui com brevidade e didatismo, mas sem facilitações, as encruzilhadas, vitórias e fracassos da esquerda. Os patrulheiros do antiesquerdismo ``fashionable" podem ficar tranquilos. O autor não absolve a esquerda de seus erros. Mas escreve do ponto de vista de um homem que Bobbio definiria como esquerdista.
Burro, ao tentar responder a questão que perpassa o livro -o que é ser de esquerda hoje?-, responde: ``Significa participar da reinvenção concreta de uma nova sociedade, baseada na justiça social e na solidariedade".
Em vez de uma resposta, Sader nos apresenta o que parece ser uma sentença ética. De que justiça, então, nos falam os que pregam e promovem a desregulamentação da economia, a privatização de estatais, o corte nos gastos sociais? Não estão a promover a justiça social? Não o fazem para ``defender os movimentos de libertação, as populações esfomeadas" de Bobbio? Não são, a seu modo, esquerdistas, só que inteligentes?
Responde Perry Anderson, professor da Universidade da Califórnia, que não são esquerdistas, desprezam a justiça social, acham o estado de bem-estar (``welfare state") um excrescência, têm horror à social-democracia e defendem um programa -o neoliberal- cuja matriz não está fundada na eficiência, mas na ideologia.
As idéias de Anderson estão expostas no texto ``Balanço do Neoliberalismo", transcrição de uma conferência proferida no Rio, no ano passado, que integra o livro ``Pós-Neoliberalismo", do qual Sader é um dos organizadores.
``Anjo Torto" sintetiza o ideário neoliberal como o adversário de turno da esquerda. E eis um pecadilho de Sader: não releva a evidência de que o neoliberalismo tem fracassado na tentativa de revigorar o capitalismo.
Ao dar sua ``aula" na Universidade Central da Venezuela, por ocasião do título de doutor ``honoris causa" que recebeu daquela instituição, o presidente Fernando Henrique Cardoso resumiu 40 anos de pensamento autonomista na América Latina -dos cepalinos ao período pós-Teoria da Dependência- e enxergou uma eloquente lacuna: ``Os ideais de justiça e igualdade prevaleciam sobre os da liberdade".
Ora, exceção feita a Cuba, não há na América Latina histórico de liberdade de menos em cenário de justiça e igualdade demais. Ao contrário, o capitalismo autoritário elevou ao máximo as injustiças e desigualdades em ambiente de liberdade nenhuma.
Não fosse FHC inteligente, estaríamos diante de um estupendo ``lapsus linguae". A liberdade como valor em si, ao qual se podem opor justiça e igualdade, não é uma ``ratio" esquerdista. Quando menos, a esquerda inverte a fórmula, como lembra Bobbio: ``Uma das conquistas mais claras (...) dos movimentos socialistas (...) é o reconhecimento dos direitos sociais ao lado dos da liberdade. Trata-se de novos direitos (...), consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem".
Diz ``O Anjo Torto", seguindo essa trilha, que a esquerda ``significa a transformação da democracia política numa democracia de conteúdo social".
Sader escreveu um livro simples e necessário. Reafirma, em tempos em que esperteza política é vendida como inteligência e esta como categoria política, a lógica da diferença. Tímido, chamou seu livro de ``O Anjo Torto", um convite à fala àqueles que escolheram ``ser gauche na vida".

Texto Anterior: Quando o crime compensa
Próximo Texto: Novas questões para a arte
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.