São Paulo, domingo, 6 de agosto de 1995
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A exacerbação do indivíduo

Para teólogo, as religiões estão enfraquecidas

FERNANDO MOLICA
EM SÃO PAULO

Para o antropólogo e teólogo Pierre Sanchis, 66, a ênfase no papel social do indivíduo tende a enfraquecer as religiões tradicionais.
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, ele foi atração de uma disputada palestra da 2ª Conferência Geral da Cehila (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina), que ocorreu na semana passada, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Para ele, o indivíduo tendia, antigamente, a se adequar a uma corrente religiosa e, aí, adquirir uma identidade. Hoje, haveria uma tendência oposta -a religião é que estaria sendo adaptada.
Francês, radicado há 30 anos no Brasil, Sanchis coordenou recentemente a produção de uma trilogia sobre catolicismo publicada pela editora Loyola. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que ele deu à Folha.

Folha - Em sua palestra, o sr. falou de uma tendência de identificação entre religião e reivindicações nacionalistas e de outra, de individualização e pulverização das religiões tradicionais. Como ambas convivem?
Pierre Sanchis - O processo de individualização é mais condizente com o curso da história contemporânea. Há o crescimento da importância do indivíduo como elemento matricial da vida social.
Antigamente, o indivíduo era visto dentro de uma sociedade, de uma totalidade. Hoje, as sociedades caminham mais rapidamente para enfatizar o papel do indivíduo como raiz da sociabilidade.
O indivíduo passou a ser a fonte, a matriz de quase tudo. Dos valores, da verdade. É o que chamo de exacerbação do individualismo.
No campo religioso é a mesma coisa. Numa religião tradicional, o indivíduo aderia a uma tradição, a uma instituição dentro da qual ele recebia sua própria identidade.
O que ocorre agora é que o indivíduo é o ponto de partida para a construção da sua identidade. Para isso, ele vai escolher elementos que correspondam a seus interesses, necessidades e aspirações. O indivíduo cria o mundo simbólico em que vai se realizar.
Passa a ser mais comum que as pessoas elaborem suas identidades religiosas. E essa arrumação de elementos tirados de várias fontes, na maior parte das vezes, nem se preocupa em ser sintetizada de um modo teoricamente coerente.
Folha - E em relação a questão das religiões e nacionalismo?
Sanchis - Quase que contraditoriamente a isso, tal vivência de religião como definidora de uma identidade coletiva está ressurgindo em várias partes do mundo.
Nessa perspectiva é que, em vários lugares, interesses políticos, às vezes econômicos, outras vezes ligados à busca de uma identidade, se amoldam, se identificam com a tradição religiosa.
Em muitos desses acertos de contas violentos é a religião que volta ao primeiro plano para definir uma identidade coletiva.
A pergunta que faço é se os dois movimentos religiosos são independentes um do outro. Não há, possivelmente, uma relação dialética entre eles. Isso, à medida que o processo de criação individualizada do meio simbólico deixa uma fraqueza, uma vulnerabilidade e uma falta de segurança.
Quando as condições são adversas, surge a necessidade de juntar-se, de criar de novo um coletivo. E aí se retomam as formas tradicionais de religião.
Folha - O processo de individualização tenderia a gerar um enfraquecimento das igrejas tradicionais, não?
Sanchis - Suponho que sim. Acho que uma das idéias que tentei passar é que o campo religioso tende a gerar tal enfraquecimento das instituições e um fortalecimento da religiosidade em si.
Folha - A partir do Vaticano 2º (conferência que, no início dos anos 60, redefiniu os rumos da Igreja Católica), é muito difícil falar em uma uma única verdade católica. Isso não teria contribuído um pouco para essa pulverização?
Sanchis - Sem dúvida. Faz parte do mesmo movimento. Na igreja existiam sistemas católicos diferentes, mesmo no que se chamava de versão oficial.
Isso sempre existiu, de uma maneira, porém, mais encoberta, mais calada, devido à quase exclusividade da afirmação institucional reforçada nos últimos séculos pela igreja. É claro que o concílio enfraqueceu esse enquadramento rígido, que, por sinal, está voltando.
Isso permitiu que tais divergências se manifestassem com mais legitimidade.
Folha - No caso dessas religiões identificadas com questões nacionais. Elas não entraram nas brigas a reboque de questões políticas e econômicas?
Sanchis - É muito difícil que uma das instâncias -política, econômica ou religiosa- entre a reboque de outra. Elas se revestem umas das outras.
Não há uma identidade política da Bósnia deixando-se de lado o aspecto religioso. Não há um fato econômico que não se revista de um imaginário que corresponda a interesses que, evidentemente, se projetam num imaginário.
E, à medida que há uma identificação entre essas dimensões, a agressão a uma delas gera, evidentemente, a resistência de todas. É o caso da Bósnia. A agressão à identidade política e territorial gerou, em um mesmo movimento, um endurecimento de uma identidade religiosa.

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