São Paulo, quarta-feira, 9 de agosto de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Equilíbrio leva a disputa nos pênaltis

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

N ão acompanho os campeonatos de futebol, de modo que corro o risco de dizer bobagem ou de chover no molhado escrevendo sobre o tema. Mas talvez uma visão externa, à distância, possa ter algum interesse para quem segue o esporte.
Uma primeira impressão: cada vez mais os campeonatos são decididos nos pênaltis. Nunca aconteceu de um país virar campeão do mundo na disputa de pênaltis, como o Brasil na última copa; recentemente, na copa América, só conseguimos eliminar os EUA nos pênaltis e foi de certa maneira justo que, na final, perdêssemos do Uruguai por pênaltis.
Pênaltis, pênaltis, pênaltis. De um lado, é bem chato que um campeonato se decida assim. De outro, é muito mais emocionante. A competição esportiva se transforma em jogo de lazer, as expectativas se concentram num único momento, a torcida quase morre do coração. Mas é possível que, ao mesmo tempo, os jogos tenham ficado mais travados, mais difíceis.
Cria-se uma situação contraditória: minha impressão é que o futebol tem ficado cada vez mais chato e cada vez mais emocionante ao mesmo tempo.
Por que tantas disputas de pênaltis? Ou vitórias na prorrogação, como domingo passado com o Corinthians? Só pode haver uma causa, a de que os jogos andam equilibrados demais. Mesmo uma goleada, como a do Grêmio sobre o Palmeiras na Libertadores, é respondida por outra goleada; 5 x 0 num jogo, 5 x 1 na revanche. Apesar de dizerem que "futebol não tem lógica", arrisco um raciocínio lógico: a qualidade dos times que chegam à final tende a ser equivalente; como os times estão em perpétuo empate, surge a necessidade de resolver a coisa nos pênaltis.
Não há favoritismos ou campanhas esmagadoras. Tudo é suado, difícil. Desconfio então que os técnicos, jogadores, preparadores físicos das equipes principais devem ter chegado a um ponto "científico", tecnológico, de sua arte. Não há segredo ou inspiração de gênio que desequilibre a disputa. O que um joga, outro joga também.
Tudo vai ficando parecido com um campeonato de xadrez, disputado entre dois computadores. Naturalmente, o papel do acaso e do imprevisto se torna muito pequeno numa situação dessas; a situação se encaminha naturalmente para o empate. Mas, como alguém tem de ganhar e alguém tem de perder, faz-se com que o acaso e o imprevisto se concentrem num momento final, o da disputa de pênaltis.
Se a comparação do futebol com a competição entre dois computadores é válida, temos de admitir também o seguinte: as regras do jogo devem ter ficado fáceis demais, transparentes demais para os times e os jogadores de hoje em dia. O máximo de treino e o máximo de talento são exigidos, sem dúvida, para que um time se torne campeão. Ocorre que um ou mais times também possuem essa mesma dose de treino e de talento.
Qual seria a graça, por exemplo, de um jogo de basquete onde a cesta estivesse apenas a um metro do chão? A seleção brasileira empataria sempre com a seleção americana -uma cesta para um time, outra cesta para o adversário. E o que aconteceria com o jogo? FIcaria mais violento: já que só seria possível impedir o adversário de fazer a cesta derrubando-o antes de chegar ao alvo. Empates, violência, pênaltis: não estará acontecendo com o futebol o mesmo que nesse exemplo do basquete?
Seria então o caso de formular regras novas para o esporte. Há muito tempo ouço falar no fim do impedimento, na cobrança de laterais com o pé, coisas desse tipo. Qualquer mudança seria desejável, pois significaria a introdução de um elemento de acaso, de dificuldade nova, que atualmente se concentra apenas na hora em que o jogo acabou, na disputa de pênaltis.
O estado atual do futebol produz, de qualquer modo, uma modificação no comportamento da torcida. Acho que, com vitórias sofridas como as atuais, o torcedor do time campeão passa a experimentar menos uma sensação de triunfo que de alívio.
Imagino que isso tenha efeitos sobre o comportamento da torcida. Foi-se o tempo em que o futebol tinha um efeito "catártico". A simples vitória não satisfaz. Tal time ficou campeão; seus torcedores estão felizes, mas ganhou o campeonato porque segurou um empate até o último minuto, ou porque o goleiro adversário frangou um pênalti. O torcedor está aliviado pelo sufoco que passou; mas desconfio que não se convenceu plenamente da vitória.
O jogo não eliminou seus instintos agressivos, não aplacou o ódio do adversário; natural que comemore distribuindo cacetadas nos perdedores. Simetricamente, a derrota não cala o torcedor do outro time; furioso como quem perdesse na roleta, entrega-se a semelhantes gestos de violência.
Claro que a violência nos estádios corresponde a fatores mais amplos, a um crescimento da violência em toda a sociedade. Mas era possível dizer, há algum tempo, que o futebol servia para canalizar instintos agressivos e que o fanatismo do torcedor substituía e neutralizava formas de comportamento muito mais perigosas.
Quem ainda acredita que isso é verdade? O futebol vai-se tornando pretexto para o desejo sanguinário das torcidas organizadas. Há pretextos mais sérios para a vontade de destruição; a fé religiosa é um deles. Mas a fé futebolística, até certo ponto, serve ao mesmo objetivo. O brucutu que torce pelo time X está apenas esperando sua vitória, ou sua derrota, para medir suas forças, fora do campo, com seu equivalente do time Y.
Como em toda forma de fascismo, a organização de massa é a arma que os covardes, os imbecis e os frustrados de todo tipo encontram para se sentirem mais fortes do que são. Há quem considere um belo espetáculo a ordem coletiva que as torcidas organizadas impõem nos estádios de futebol. De fato, é bonito quando todo mundo grita ao mesmo tempo. A imagem de "solidariedade", de "igualdade" aparece nesses momentos, utopicamente, como manifestação de alegria generalizada.
Mas os desfiles nazistas também eram bonitos. Como não temos nenhum tipo de utopia guerreira ou totalitária, as torcidas organizadas servem para que se brinque de fascismo entre nós.
Talvez seja um exagero. Mas enquanto as regras do futebol de hoje permitirem esses sentimento de vitória incompleta, de violência dentro do campo, de equilíbrio entre os times, em que mesmo quem vence parece apenas ter escapado por pouco da derrota, teremos um esporte que a cada dia interessa menos ao público em geral e cada vez mais incentiva o fascismo dos que, vencedores ou vencidos, querem apenas jogar outro jogo, sem regra nenhuma, fora do campo.

Texto Anterior: 'Vitor' ordena jogo de máscaras
Próximo Texto: Começa no Rio projeto "Contatos Cênicos"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.