São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 1995
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Kierkegaard

JOSTEIN GARDEER

... a Europa a caminho da bancarrota...

Hilde olhou o relógio. Já passava das quatro. Colocou o fichário na escrivaninha e desceu correndo para a cozinha. Tinha de levar o lanche até a casa de barcos antes que sua mãe desistisse de esperar. Ainda deu uma olhada no espelho ao passar correndo por ele.
Com toda a pressa do mundo, colocou a água do chá para ferver e preparou alguns sanduíches.
Sim, sim, ela iria pregar uma peça em seu pai. Cada vez mais Hilde se sentia aliada de Sofia e Alberto. E a coisa já começaria em Copenhague...
Pouco depois chegou à casa de barcos com a bandeja.
- Hora do lanche!
Sua mãe estava ocupada em lixar um pedaço de madeira. Quando ouviu a filha chamar, afastou da testa uma mecha de cabelos grisalhos, a esta altura cobertos por uma finíssima camada de pó de serragem, e disse:
- Certo. A gente não almoçou mesmo...
Sentaram-se lá fora, no ancoradouro, e começaram a comer.
- Quando papai chega? - perguntou Hilde.
- No sábado, você já sabe.
- Sim, mas a que horas? Você não disse que ele tem uma conexão em Copenhague?
Sua mãe mastigava um pedaço do sanduíche de pasta de fígado com pepinos.
- ...ele chega a Copenhague lá pelas cinco. O avião para Kristiansand parte às oito e quinze e chega por volta de nove e meia.
- Quer dizer que ele vai ficar algumas horas em Copenhague.
- Por quê?
- Por nada... Eu só queria saber o roteiro da viagem.
Continuaram comendo. Quando Hilde achou que já tinha passado tempo suficiente, perguntou:
- Você tem tido notícias de Anne e Ole ultimamente?
- Sim, eles ligam de vez em quando. Eles vêm para cá em julho, nas férias. Mas não marcaram data.
- Não pode ser antes?
- Não, acho que não.
- Então esta semana eles estão em Copenhague...
- Hilde, o que está acontecendo?
- Nada. Só estou tentando puxar um assunto para a gente conversar.
- Mas você já falou duas vezes em Copenhague.
- É mesmo?
- Comentamos a escala de seu pai...
- ...e então eu me lembrei de Anne e de Ole.
Depois que terminaram, Hilde colocou as xícaras e os pratos na bandeja.
- Vou continuar lendo, mamãe...
- Ah, sim, acho que você está mesmo precisando...
Será que havia uma pontinha de reprovação naquela resposta? Elas tinham combinado deixar o barco prontinho antes que o major voltasse.
- De certa forma, papai me fez prometer que eu leria o livro antes de ele voltar.
- Não sei se acho isto bom. Tudo bem que ele fique fora muito tempo; mas querer controlar de longe as coisas que acontecem aqui em casa...
- Se você soubesse tudo o que ele controla... - disse Hilde num tom de mistério. - E você nem imagina como isto lhe dá prazer.
Depois foi para o seu quarto e continuou a ler.

De repente, Sofia ouviu alguém batendo na porta. Alberto olhou para ela muito sério.
- Não queremos ser perturbados, queremos?
Bateram mais forte.
- Vamos falar agora sobre um filósofo dinamarquês, que ficou muito irritado com a filosofia de Hegel - disse Alberto.
Mas começaram a bater tão forte, que a porta chegava a tremer.
- É claro que é o major nos enviando outra de suas personagens fantásticas, só para ver se consegue nos pegar de novo - disse Alberto. - Para ele isto não é problema.
- Mas se não abrirmos e vermos quem é, ele também não terá o menor problema em demolir a casa inteira.
- Talvez você tenha razão. Vamos abrir.
Foram até a porta. Pela força das batidas, Sofia estava esperando um gigante, no mínimo. Mas lá fora só havia uma menina com um vestido florido e longos cabelos loiros. Na mão ela segurava dois frascos: um era vermelho, o outro, azul.
- Olá! - disse Sofia. - Quem é você?
- Meu nome é Alice - respondeu a menina enquanto fazia um gesto de cortesia meio envergonhada.
- Foi o que pensei - disse Alberto. - É Alice no País das Maravilhas.
- Mas como ela chegou até aqui?
A própria Alice explicou:
- O País das Maravilhas é um lugar sem fronteiras, o que significa que ele está por toda a parte. Mais ou menos como a ONU. Por isso o País das Maravilhas deveria se tornar membro honorário da ONU. Precisamos de um representante em cada comitê.
- Ah, o major! - disse Alberto, sorrindo satisfeito.
- E o que traz você aqui? - perguntou Sofia.
- Eu trouxe estes dois frascos da filosofia para você.
Entregou a Sofia os dois frascos; num deles havia um líquido vermelho e no outro, um líquido azul. No frasco vermelho estava escrito ``BEBA-ME!" E no azul ``BEBA-ME TAMBÉM!"
No instante seguinte, um coelho branco passou correndo pela cabana. Ele corria sobre duas patas e usava um colete e um paletó. Quando passou na frente da cabana, tirou do bolso do colete um relógio e disse:
- É tarde! É tarde!
E continuou a correr. Alice fez menção de sair correndo atrás dele; antes, porém, voltou-se para Sofia e Alberto, fez uma reverência e disse:
- Vai começar tudo de novo!
- Mande um abraço para Diná e para a Rainha! - disse Sofia para Alice, que a esta altura já tinha saído atrás do coelho.
Pouco depois, Alice desapareceu na floresta. Alberto e Sofia ficaram parados à entrada da cabana olhando os dois frascos.
- ``BEBA-ME!" e ``BEBA-ME TAMBÉM!" - leu Sofia. - Não sei se devo. Pode ser veneno.
Alberto sacudiu os ombros.
- Esses vidros vêm do major e tudo o que vem do major é pura imaginação. Portanto, isso aí não passa de um suco imaginário.
Sofia tirou a rolha do vidro vermelho e encostou-o cautelosamente nos lábios. O suco tinha um gosto adocicado e estranho. Mas isto não era tudo. Imediatamente, aconteceu algo com o mundo à sua volta: primeiro, foi como se a imagem do lago, da floresta e da cabana se fundissem numa coisa só. Depois pareceu-lhe que tudo o que ela via era apenas uma pessoa e que esta pessoa era ela mesma. Quando finalmente olhou para Alberto, ele também parecia ter se transformado numa parte dela mesma.
- Que coisa estranha - disse ele. - De repente, tudo o que vejo parece estar relacionado. Tenho a sensação de que tudo é apenas uma única consciência.
Alberto concordou com a cabeça, mas Sofia teve a sensação de que era ela mesma quem concordava.
- Isto é o panteísmo, ou a filosofia da unidade - disse Alberto. - É o espírito do mundo dos românticos, que experimentavam tudo como um único e grande ``eu". Mas é também Hegel, que, sem perder o indivíduo totalmente de vista, considerava tudo expressão de uma razão universal.
- Você acha que eu devo beber o líquido do outro vidro?
- É o que está escrito aí.
Sofia tirou a rolha do outro vidro e deu uma boa golada. O líquido azul tinha um gosto mais fresco e mais azedo do que o vermelho. Mas também desta vez tudo à sua volta se transformou de imediato: no mesmo instante passou o efeito do líquido vermelho e tudo voltou ao seu lugar. Alberto voltou a ser Alberto, as árvores da floresta voltaram a ser árvores da floresta e o lago voltou a ser lago. Mas isto também durou apenas um segundo, e então tudo o que Sofia via começou a se desmanchar. Para começar, a floresta deixou de ser floresta; era como se, de repente, a menor das árvores fosse um mundo em si, cada galho uma aventura sobre a qual podiam ser contados milhares de contos de fadas. O pequeno lago transformou-se para ela num oceano infinito, não porque fosse grande e profundo, mas por causa de seus milhares de detalhes cintilantes e por suas ondas de formas e tamanhos fascinantes. Sofia entendeu que poderia ficar observando este pequeno lago pelo resto de sua vida e ainda assim ele continuaria sendo um mistério indecifrável para ela.
Sofia olhou, então, para a copa de uma árvore. Ali, três pardais estavam entretidos numa brincadeira divertida. Eles já tinham pousado na árvore antes de Sofia beber o líquido vermelho, mas só agora é que ela realmente os tinha percebido. O líquido vermelho, que ela bebera da primeira vez, apagara todos os contrastes e todas as diferenças individuais.
Sofia levantou-se do degrau de pedra em que estava sentada, ajoelhou-se e observou a grama. E ali também encontrou um mundo à parte, mais ou menos como se tivesse dado um mergulho e abrisse os olhos pela primeira vez no fundo do mar. Entre os ramos e as folhinhas da grama, milhares de formas de vida movimentavam-se febrilmente. Sofia viu uma aranha que se movia segura e energicamente sobre o musgo, um pulgão subindo e descendo por um raminho de grama e um pequeno exército de formigas trabalhando em conjunto. E mesmo entre as formigas, cada uma tinha o seu jeito particular de levantar as pernas.
O mais curioso de tudo, porém, foi quando Sofia se levantou novamente e olhou para Alberto, que continuava de pé à soleira da porta. De repente ela viu nele um ser completamente fora do comum, uma espécie de homem de outro planeta, ou uma personagem saída de um conto de fadas diferente daquele que ela vivia no momento. Ao mesmo tempo, ela também se percebeu a si mesma de uma maneira completamente diferente; ela era uma pessoa especial, extraordinária, não apenas uma pessoa comum, não apenas uma jovem de quinze anos: ela era Sofia Amundsen e só ela era assim!
- O que você está vendo? - perguntou Alberto.
- Vejo que você é um pássaro muito esquisito.
- É mesmo?
- Acho que nunca vou entender como é ser outra pessoa. Não há duas pessoas iguais em todo o mundo.
- E a floresta?
- Ela não parece mais ser a mesma. Ela é como um universo de muitos contos fantásticos.

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