São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 1995
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Kierkegaard

JOISTEN GAARDER

- Então sugiro que você engate marcha a ré e comece do começo.
- Aos dezessete anos, Kierkegaard começou a estudar teologia, mas logo foi se interessando cada vez mais por questões filosóficas. Doutorou-se aos vinte e oito anos com a tese ``O conceito da ironia em Sócrates". Nesta obra, Kierkegaard acerta as contas com a ironia romântica e com a forma descompromissada de os românticos brincarem com a ilusão. À ironia romântica Kierkegaard contrapõe a ``ironia socrática". Sócrates também fizera uso do recurso estilístico da ironia, mas só com o intuito de chamar a atenção de seus ouvintes para uma atitude mais séria em relação à vida. Sócrates era para Kierkegaard, ao contrário do que significa para os românticos, um pensador existencial, ou seja, alguém que transporta toda a sua existência para dentro de sua reflexão filosófica. Ao contrário dos românticos, que para Kierkegaard não tinham feito nada disso.
- Entendo.
- Depois de romper seu noivado, Kierkegaard viajou em 1841 para Berlim, onde assistiu a conferências de alguns filósofos, dentre eles Schelling.
- Ele chegou a se encontrar com Hegel em Berlim?
- Não. Hegel já havia falecido dez anos antes, embora continuasse a viver ``em espírito" em Berlim e em muitas partes da Europa. Seu ``sistema" era usado como uma espécie de explicação geral para todas as perguntas imagináveis. Kierkegaard assumiu uma posição radicalmente oposta e explicou que as ``verdades objetivas", com as quais se ocupava a filosofia hegeliana, eram totalmente irrelevantes para a existência do homem enquanto indivíduo.
- E que verdades seriam relevantes?
- Para Kierkegaard, mais importante do que a busca de uma VERDADE com letras maiúsculas era a busca por verdades que são importantes para a vida de cada indivíduo. Ele dizia que o importante era encontrar ``a minha verdade", a verdade de cada um. Ele opunha o indivíduo ao ``sistema", portanto. Kierkegaard dizia que Hegel também tinha se esquecido de que era apenas uma pessoa. Ele zombava do tipo do professor hegeliano que vivia no alto de uma torre de marfim e que, preocupado em explicar os mistérios da vida, esquecia o seu próprio nome, esquecia-se de que era uma pessoa, uma pessoa como outra qualquer, e não meia dúzia de parágrafos bem elaborados que de verbo tinham se tornado carne.
- E o que é o ser humano para Kierkegaard?
- Isto não dá para responder de uma maneira geral. Kierkegaard não está nem um pouco interessado numa descrição genérica da natureza ou do ``ser" humano. Fundamental para ele é a existência de cada um. E o homem não experimenta sua existência atrás de uma escrivaninha. Somente quando agimos, e sobretudo quando fazemos uma escolha, é que nos relacionamos com nossa própria existência. Uma história que se conta sobre Buda pode ilustrar o que Kierkegaard quer dizer.
- Sobre Buda?
- Sim, pois a filosofia de Buda também tem como ponto de partida a existência humana. Certa vez, um monge disse a Buda que ele dava respostas pouco claras para perguntas importantes, tais como o que é o mundo ou o ser humano. Buda respondeu com o exemplo de uma pessoa que é ferida por uma seta envenenada. O ferido não tem qualquer interesse teórico em saber de que material a seta é feita, em que tipo de veneno ela foi embebida ou de que ângulo ela o atingiu.
- Provavelmente, o que ele quer é que alguém lhe extraia a seta envenenada e cuide do ferimento.
- Não é mesmo? Isto sim seria existencialmente importante para ele. Tanto Buda quanto Kierkegaard tinham plena consciência de que só viveriam por um curto período de tempo. E, como dissemos, nesse caso não dá para ficar sentado atrás de uma escrivaninha, especulando sobre o espírito do mundo.
- Entendo.
- Kierkegaard também disse que a verdade era ``subjetiva". Não no sentido de que é totalmente indiferente o que pensamos ou aquilo em que acreditamos. Kierkegaard só queria dizer que as verdades realmente importantes são pessoais. Somente tais verdades são ``verdades para mim", são verdades para cada um.
- Você poderia me dar um exemplo dessas verdades subjetivas?
- Uma questão importante, por exemplo, é a de se saber se o cristianismo é verdade. Para Kierkegaard, esta não é uma questão para ser encarada do ponto de vista teórico ou acadêmico. Para alguém que se entende como algo que existe, trata-se aqui de vida ou morte. E isto não se discute simplesmente porque se gosta de discutir. Trata-se de algo que deve ser abordado com absoluta paixão.
- Entendo.
- Quando você cai na água, você não fica teorizando sobre a questão de saber se vai ou não se afogar. Também não é interessante ou desinteressante saber se há crocodilos na água. Trata-se de uma questão de vida ou morte.
- Claro!
- É preciso distinguir, portanto, entre a questão filosófica de saber se Deus existe e a relação do indivíduo para com esta mesma questão. Trata-se aqui de questões com as quais cada um tem de se confrontar sozinho. Além disso, só podemos abordar estas questões através da fé. Kierkegaard não considera essencial aquilo que somos capazes de compreender com nossa razão.
- Não entendi.
- Oito mais quatro são doze, Sofia. Podemos estar absolutamente certos quanto a isto. Trata-se de um exemplo para as verdades racionais, sobre as quais falaram todos os filósofos desde Descartes. Mas nós as incluímos em nossas orações antes de dormir? E por acaso ficamos quebrando a cabeça sobre elas em nosso leito de morte? Não. Por mais ``objetivas" ou ``genéricas" que tais verdades sejam, é exatamente por isso que elas são tão pouco importantes para a existência de cada um.
- E a questão da fé?
- Você não pode saber se uma pessoa te perdoa quando você faz alguma coisa de errado para ela. Trata-se de uma questão com a qual você está profundamente envolvida. E exatamente por isso ela é existencialmente importante para você. Você também não pode saber se uma pessoa gosta de você. Você só pode acreditar ou ter esperança de que assim seja. Apesar disso, essas coisas são mais importantes para você do que o fato incontestável de que a soma dos ângulos de um triângulo é de cento e oitenta graus. Por fim, ninguém pensa na lei da causa e efeito ou nas ``formas da sensibilidade" de Kant quando ganha o primeiro beijo.
- Não, isto seria uma loucura.
- E a fé assume importância maior quando se trata de questões religiosas. Kierkegaard acha que se quero entender Deus objetivamente, isto significa que eu não creio; e precisamente porque não posso entendê-lo objetivamente é que preciso crer. Assim, se quero preservar minha fé, preciso estar sempre atento para não me esquecer de que estou na incerteza objetiva ``sobre setenta mil braças de água", e ainda assim creio.
- Esta foi da pesada.
- Antes de Kierkegaard, muitos tinham tentado provar a existência de Deus ou então entendê-la racionalmente. Mas quando nos envolvemos com tais provas de existência de Deus ou com tais argumentos racionais, perdemos nossa fé e, com ela, nosso fervor religioso. Isto porque o fundamental não é saber se o cristianismo é verdadeiro, mas se é verdade para mim. Na Idade Média expressava-se o mesmo pensamento com a fórmula ``credo quia absurdum".
- O quê?
- A expressão significa ``Creio, porque é absurdo". Se o cristianismo tivesse apelado à razão, e não ao nosso outro lado, ele não seria uma questão de fé.
- Agora entendi.
- Vimos, portanto, o que Kierkegaard entendia por ``existência", ``verdade subjetiva" e ``fé". Kierkegaard chegou até estes conceitos por meio da crítica à tradição filosófica, sobretudo a Hegel. Só que esses conceitos também expressam toda uma crítica da civilização. Para Kierkegaard, a sociedade urbana moderna transformou o homem em ``público", em ``instância coletiva", e a primeira característica da multidão é justamente este ``palavrório" inconsequente. Hoje talvez empregássemos a palavra ``conformidade", ou seja, o fato de que todos ``acham" ou ``defendem" uma mesma coisa, mas ninguém tem uma relação verdadeiramente apaixonada com o tema.
- Imagino o que Kirkegaard não teria dito aos pais de Jorunn!
- De fato, ele não foi muito indulgente com os outros. Foi um crítico mordaz, capaz de usar uma ironia cáustica. Ele escreveu, por exemplo: ``A multidão é a inverdade". Ou: ``A verdade está sempre na minoria". Kierkegaard disse também que a maioria das pessoas se relacionava de forma extremamente inconsequente com a vida.
- Colecionar bonecas Barbie é uma coisa. Ser uma Barbie é ainda pior...
- Isto nos leva à teoria de Kierkegaard sobre os três estágios na trajetória da vida.
- O que você disse?
- Kierkegaard achava que havia três possibilidades diferentes de existência. Ele mesmo emprega a palavra ``estágios". A essas possibilidades ele dá o nome de ``estágio estético", ``estágio ético" e ``estágio religioso". Quando emprega a palavra ``estágio", ele quer dizer que podemos estar vivendo num dos dois estágios inferiores e de repente conseguimos ``saltar" para um estágio superior.
- Aposto que vem aí uma explicação. Eu mesma estou curiosa para saber em qual dos três estágios me encontro.
- Quem vive no estágio estético vive o momento e visa sempre ao prazer. Bom é aquilo que é belo, simpático ou agradável. Desse ponto de vista, tal pessoa vive inteiramente no mundo dos sentidos. O esteta acaba virando joguete de seus próprios prazeres e estados de ânimo. Negativo é tudo aquilo que aborrece, que ``não é legal", como se costuma dizer hoje em dia.
- Ah... isso aí eu conheço muito bem.
- O romântico típico também é um esteta, pois não se trata aqui simplesmente de prazer sensorial. Uma pessoa que possui uma relação lúdica com a realidade, ou, por exemplo, com a arte ou a filosofia de que se ocupa, também vive num estágio estético. E mesmo diante da preocupação e do sofrimento é possível se adotar um comportamento estético ou ``de mero observador". Neste caso, é a vaidade que toma as rédeas de tudo. ``Peer Gynt", de Ibsen, é retrato do esteta típico.
- Acho que entendo o que Kierkegaard quer dizer.
- Você está se reconhecendo neste conceito?
- Não inteiramente. Mas acho que isto tudo lembra um pouco o major.
- Sim, sim, é possível, Sofia. Embora isto seja outro exemplo da ironia romântica kitsch que é peculiar a ele. Você deveria lavar a boca!!!
- O que você disse?
- Bem... não foi sua culpa.
- Prossiga.
- Aquele que vive no estado estético está sujeito a sentimentos de medo e a sensações de vazio. Mas se ele experimenta esses sentimentos, então também há esperança. Para Kierkegaard, o medo é uma coisa quase positiva. Ele é um sinal de que a pessoa se encontra numa ``situação existencial". O esteta pode então decidir se quer dar o salto para um estágio superior. Ou ele acontece, ou então não acontece. De nada ajuda estar na iminência de pular e depois não realizar o salto. Ou uma coisa ou outra. E também não é possível que outra pessoa dê o salto em seu lugar. Você mesma tem de decidir e você mesma tem que pular.
- É mais ou menos como quando alguém quer largar a bebida ou as drogas.
- Sim, talvez. Quando Kierkegaard fala dessa decisão, ele nos faz lembrar um pouco de Sócrates, para quem todo conhecimento verdadeiro vinha de dentro. A decisão que leva uma pessoa a saltar de uma visão de mundo estética para uma ética ou religiosa deve vir de dentro. É exatamente isto que Ibsen mostra em ``Peer Gynt". Outro exemplo magistral de uma escolha existencial nos é dado pelo romance ``Crime e Castigo", do escritor russo Dostoievski. Quando terminarmos nosso curso de filosofia, você não pode deixar de ler este livro.
- Vamos ver. Quer dizer que Kierkegaard acha que quando a coisa fica séria para o lado de alguém, a pessoa escolhe outra forma de ver a vida.
- E talvez comece a viver num estágio ético. Este estágio é marcado pela seriedade e por decisões consistentes, tomadas segundo padrões morais. Você se recorda da ética do dever, de Kant, segundo a qual devemos tentar viver de acordo com a lei moral. Como Kant, Kierkegaard também dedica sua atenção neste assunto sobretudo ao temperamento humano. O essencial não é necessariamente o que se considera certo ou errado. O essencial é a decisão de se posicionar em relação ao que é certo e ao que é errado. O esteta se interessa apenas pelo que é divertido ou entediante.
- E não se corre o risco de se levar a vida um pouco a sério demais quando se vive assim?
- É claro que sim. Mas Kierkegaard ainda não está satisfeito com o estágio ético. Para ele, também chega o dia em que o homem zeloso se cansa de ser tão ordeiro e tão cônscio de seus deveres. Muitas pessoas passam bem tarde na vida por esta fase de tédio e de fadiga. E então é possível que algumas delas adotem uma atitude mais lúdica em relação à vida e retornem ao estágio estético. Outras, por sua vez, ousam mais um salto rumo ao próximo estágio, o estágio religioso. Elas ousam o grande salto rumo às ``setenta mil braças de água" da fé. Elas preferem a fé ao prazer estético e aos mandamentos da razão. E embora possa ser desesperador ``cair nas mãos do Deus vivo", para usar uma expressão do próprio Kierkegaard, só nesse caso o homem pode se reconciliar com sua própria vida.
- Através do cristianismo, portanto.
- Sim. Para Kierkegaard, o estágio religioso era o cristianismo. Apesar disso, sua filosofia influenciou também muitos pensadores não cristãos. Em nosso século surgiu uma chamada filosofia da existência, ou Existencialismo, fortemente inspirada em Kierkegaard.
Sofia olhou o relógio.
- São quase sete. Preciso voltar correndo para casa, senão minha mãe vai ficar louca comigo.
Despediu-se do seu professor de filosofia e desceu correndo rumo ao lago onde estava ancorado o barco a remo.

Texto Traduzido por JOÃO AZENHA JR. para a Companhia das Letras

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