São Paulo, sábado, 19 de agosto de 1995
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Machado de Assis inventou o Brasil

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A notícia de que vai ser filmado o ``Retrato de uma Senhora", de Henry James, me faz farejar obra-prima cinematográfica no ar. O romance é lindão e pertence à fase que se diria fácil do complicado James.
Só literatura fácil dá cinema bom. Numa floresta como numa literatura a gente acaba, com o tempo, por distinguir com bastante precisão a madeira de lei do que não passa de matagal.
No momento fatal e decisivo em que o Brasil e os Estados Unidos, bastante grandes territorialmente para poderem virar grandes potências, buscavam em si mesmos sinais de grandeza espiritual também, produziram seus dois grandes gênios literários: Machado de Assis e Henry James.
Exatamente por haverem crescido muito mais do que nós materialmente, os Estados Unidos cresceram mais também no campo literário, dentro do contexto mundial: país nanico não produz arte grande. Mas pode-se dizer que até Machado (1839-1908) o Brasil, que resistiu à tentação separatista que lhe veio depois da independência, ainda podia tomar jeito.
Quanto aos Estados Unidos dos tempos de Henry James (1843-1916) o país já havia atravessado seu período de incerteza graças ao acúmulo de riqueza material. Sentia-se ainda rude diante da Europa mas já escancarava as portas do ``saloon" da concorrência mundial de espora na bota e garrucha no cinto.
Exatamente porque refletiram com perfeição o momento crucial do parto de seus países, Machado e James serão para sempre os dois gênios maiores, os patriarcas.
James teve que andar depressa para firmar os traços da inocência original de um país que estava rapidamente virando Europa.
Machado teve todo o tempo do mundo para constatar que o Brasil estava virando um grande Portugal, que jamais aceitaria a rude tarefa de criar o futuro que a grandeza territorial lhe oferecia. Sua última heroína, a Flora de ``Esaú e Jacó", morre de anemia, de fraqueza, para não ter de escolher entre os dois gêmeos que lhe pediam a mão. Morre para não ter que dizer sim ou não.
Henry James, ao contrário, já sentia de tal forma a força bruta dos Estados Unidos, que alarmava sua finura européia, que se naturalizou inglês no fim da vida, para justificar sua fidelidade aos valores da ``civilização" na primeira guerra européia. O Reino Unido imediatamente recebeu de volta o oriundo arrependido, pespegando-lhe a Ordem do Mérito.
Os americanos, que bobos nunca foram, não se zangaram com James nem quando ele, no último grande conto que escreveu, ``The Jolly Corner", justificou seu gesto traçando, num enredo fantasmagórico, o pavor que sentira de virar um ser endinheirado e vulgar, caso permanecesse nos Estados Unidos.
James teve, portanto, como angústia central de romancista, a noção de que lhe cabia interpretar o país que lhe desagradava por estar crescendo depressa demais, antes de adquirir boas maneiras.
Os Estados Unidos eram os grandes beneficiários do darwinismo social dos nossos tempos: o mundo é pragmático e vencem os países que são mais violentos e mais atentos e fortes, e não os mais civilizados e distraídos. Vale lembrar que o irmão do romancista foi o grande filósofo William James, que lançou os Estados Unidos nos grandes campos da filosofia mundial.
Machado, que agradeceu aos fados não ter produzido filho nenhum, também não teve nenhum irmão. E o Brasil estava longe de conseguir produzir um filósofo. Ele teve, como romancista, tarefa muito mais complicada que a de James, Dickens ou Balzac. Lamartine Babo disse que Cabral inventou o Brasil, mas na realidade nosso inventor foi Machado. Com a cabeça estourando de personagens e sem palco para eles, inventou o Brasil. E nos deixou, como dúbia herança, essa perene incerteza em relação a nós.
É fácil fazer um filme de ``Portrait of a Lady", primeira obra-prima de James. Mas só sei de poucos, pouquíssimos diretores que pudessem passar para a tela, a partir do explícito pesadelo inicial, o risonho mas terrível pesadelo que é, de ponta a ponta, ``Brás Cubas".

Miguel Lins
A recente morte do advogado Miguel Lins é das pouquíssimas que justificaria o clichê de ``perda irreparável para a sociedade carioca". Miguel conhecia -e encantava- todo o mundo, de Nascimento Brito, Antonio Galloti a Evandro Lins e Silva, Moacir Werneck de Castro, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Pedro Nava.
Qualquer reunião na casa de Miguel era uma edição do ``Who's Who" nacional, não de um ponto de vista frívolo e sim do que resulta do encontro, como havia em Miguel, de muita inteligência e um esbanjamento de ternura, de cuidado com os incontáveis amigos e amigas que tinha.
No meu caso, por exemplo, ele não só foi meu advogado (sem cobrar um vintém) quando fui julgado por subversão por um tribunal da Aeronáutica (ó loucura! ó país machadiano!) e absolvido por um voto: me disse, quando saímos do tribunal, entre beijos e abraços, que já tinha, caso eu fosse condenado, um plano para eu me refugiar no Paraguai, em vez de ser devida e honestamente encanado.
Foi advogado também, não me lembro a propósito de que, do Nelson Rodrigues. Nelson, quando íamos à encantadora casa de Miguel à beira do canal da rua Visconde de Albuquerque, dizia, balançando, grave, a cabeça: ``Casa de romance policial inglês".
E Hélio Pellegrino, quando ouvia uma das mil histórias que Miguel sabia sobre os podres da sociedade carioca, explodia, com sua admirável energia mineiro-calabresa: ``É o nosso Balzac!".
Lá se foi o bom Miguel, como dizia Salim Simão, lá se foi boa parte da alegria do Rio.

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