São Paulo, domingo, 20 de agosto de 1995
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Um apocalipse cotidiano

MANUEL DA COSTA PINTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Já se tornou recorrente na crítica literária contemporânea dizer que cada escritor cria a tradição que lhe é anterior, que cada artista evoca autores cujo parentesco se torna visível em sua própria obra e que esta seria a culminância lógica de uma linhagem produzida por um efeito premeditado de estilo.
Desse ponto de vista, "Centúria - Cem Pequenos Romances-Rio, do milanês Giorgio Manganelli (1922-1990), tem como horizonte de criação as obras em prosa que fundam a literatura italiana no fim da Idade Média, substituindo o latim escolástico pelo latim vulgar.
Esse movimento de retorno ao passado já ocorrera em sua primeira obra, "Hilarotragoedia (Imago), de 1964, uma paródia da "Divina Comédia cuja experimentação linguística colocara Manganelli ao lado de dois dos maiores ficcionistas da Itália do pós-guerra: Carlo Emilio Gadda e Italo Calvino.
Em "Centúria, Manganelli recua ainda mais no arco temporal da literatura italiana. Como nota a tradutora Roberta Barni no posfácio do livro, pode-se identificar em "Centúria o modelo de "Il Novellino -uma coletânea de cem narrativas anônimas, escritas em Florença no final do século 13.
Os paralelos são eloquentes. O "Novellino é uma sequência de crônicas que têm como leitor implícito uma burguesia nascente, que se aproxima do universo da nobreza por meio do imaginário galante de enredos cavalheirescos e histórias exemplares, de uma "cantilena hipnótica que contempla o passado perdido -segundo a definição do próprio Manganelli num ensaio sobre a obra.
Os breves relatos de "Centúria são, numa analogia às avessas, uma evocação das pequenas aventuras de personagens envolvidas em obsessões cotidianas, exasperadas por idéias que almejam a grandeza, mas cujo lento ruminar impede que essas idéias se corporifiquem em atos.
São assim a história do homem que "havia descoberto a prova irrefutável da existência de Deus e que vai progressivamente esquecendo os termos essenciais de sua equação (capítulo 4); ou do casal que se apaixonara a partir de uma infelicidade comum e cujo amor só podia existir na perpetuação dessa dor, levando-os à "meticulosa, lenta destruição recíproca (capítulo 89).
Manganelli parece descobrir, na estrutura fixa do "Novellino, uma fórmula para escandir não mais o universo heróico de indivíduos que se espelham nas sagas dos semideuses, mas um mundo em que até os acontecimentos mais decisivos da história -golpes de estado, revoluções, cataclismas- são reduzidos à insignificância de personagens crepusculares, melancólicas.
Daí o fato de essas personagens serem todas anônimas, o que transforma o livro numa espécie de drama cujos atores são fantasmas, seres esgotados cuja vida ganha sentido somente nas relações estratégicas que mantêm com os outros fantasmas ou com as obsessões espectrais que povoam a narrativa descarnada de "Centúria.
O sentido descritivo do livro lembra uma outra possível fonte de Manganelli: o "Decameron, de Boccaccio (1313-1375). Além da óbvia semelhança formal (o "Decameron também é composto por cem novelas), Boccaccio mostra a Manganelli a possibilidade de extrair um sentido moral de relatos à primeira vista dispersos.
A diferença, porém, é que as novelas de Boccaccio eram uma elegia cômica e anticlerical à vida no momento em que a Florença do século 14 era assolada pela peste negra, enquanto os "romances-rio de Manganelli desenham o apocalipse diário de um mundo em que prazer e sofrimento só existem nos domínios da ficção.
Essa exacerbação do ficcional, em que toda experiência é tragada por uma linguagem que a constitui, é certamente o traço que aproxima Manganelli de autores como Borges e Calvino.
Não é difícil identificar uma certa semelhança entre os dispositivos narrativos de "Centúria -com seus cem capítulos de tamanhos iguais- e de "As Cidades Invisíveis -em que Calvino alterna os relatos segundo uma série matemática.
Em ambos os casos, trata-se de eleger um modelo narrativo arbitrário, porém rigoroso, que organize e condicione a invenção dos enredos romanescos -numa paródia dos processos criativos pré-modernos, em que a criação desafiava os modos herdados da tradição.
Dessa forma, a própria tradição se transforma num efeito da matéria ficcional, indo de encontro àquela afirmação de Borges segundo a qual "cada escritor cria seus precursores (in "Kafka e Seus Precursores).
A consciência desse caráter positivo da linguagem, na qual as palavras criam as coisas (mote de Foucault inspirado, aliás, no Borges de "O Idioma Analítico de John Wilkins), dá a Manganelli uma liberdade infinita na invenção de sua "Centúria.
São borgianas, por exemplo, as histórias do "cavalheiro insaciável de sonhos, que sonhava por todos os moradores de seu prédio (capítulo 96), e do homem que medita sobre a diferença que existe "entre um morto de cinco minutos, um morto de cinco anos, um morto de dois mil anos, um de quinhentos mil (capítulo 98).
Em contraste com o estilo caleidoscópico, cristalino e muitas vezes cerebral de Calvino ou Borges, porém, Manganelli funda sua tradição no gosto pelo paradoxal e pelo "nonsense -que ele identificara em autores como Poe e Carroll durante seus cursos como professor de literatura de língua inglesa na Universidade de Roma.
"Hilarotragoedia foi talvez o exemplo mais virtuosístico dessa obra singular: a cosmologia escatológica de um mundo em que Deus está morto, cheia de neologismos e arcaísmos que descrevem, à maneira de um tratado medieval, a tragédia hilariante de seres "hadestinados (destinados ao Hades, ao inferno), e que desafia o caráter sublime, divino, da comédia de Dante.
Os relatos de "Centúria são menos exuberantes -mas talvez mais cruéis. Mesmo as eventuais referências a entes mitológicos têm um sentido irônico, cujo efeito é precipitar esse universo no vazio criado pela uniformidade corrosiva de sua linguagem.
Com isso, percebe-se o quanto é perversa a relação de Manganelli com seus precursores. Suas paródias remetem a obras de autores como Dante ou Boccaccio, mas o que neles era conquista do novo, fundação de uma língua e renascimento de um mundo adquire, em Manganelli, uma valência negativa e niilista, tanto mais eficaz quanto vazada em esquemas narrativos que estão na própria origem da tradição literária italiana.
Ao confrontar seus seres anônimos com as virtudes e a sensualidade cavalheirescas das personagens do "Novellino e do "Decameron, Manganelli transforma a solidão e a esterilidade do homem moderno num danação renovada -reiterando, assim, os versos de Salvatore Quasimodo: "Sou um homem só,/um só inferno.

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