São Paulo, quarta-feira, 23 de agosto de 1995
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Por que deixo o PT

CÉSAR BENJAMIN

Armou-se um quiproquó a partir de minha intervenção no 10º Encontro do PT. Não desejo que, descontextualizados fatos e frases, se consolide a versão de que eu teria insinuado acusações contra José Dirceu. Além de injusta com ambos -não faço insinuações, nem Dirceu se presta a alvo desse tipo de coisa-, essa versão só serve para encobrir a natureza do debate abortado.
Um mau encontro refletiu a má situação do PT. E, seguindo a tradição escolástica, reiteramos o comportamento de buscar em refinamentos do nosso discurso interno -ora com inflexões ``à esquerda", ora ``à direita"- a saída para uma crise que não habita aí.
Agindo com autonomia em relação ao discurso eventualmente predominante, processos desestruturantes muito mais básicos corroem, à vista de todos, os fundamentos da nossa militância.
Quando formamos o partido, herdamos um capital político formado nas comunidades católicas, no movimento sindical, em organizações de esquerda, em universidades, no campo, no exílio.
O movimento de São Bernardo apresentou um ponto de aglutinação para essa energia que estava dispersa. Ganhamos um impulso, o ``impulso de São Bernardo", e dele extraímos nossa vitalidade. Mas o partido muda, e a sociedade em que ele atua muda também.
O impulso de São Bernardo está esgotado. E o destino nos emparedou: não tivemos condições de promover as transformações que desejaríamos, mas já temos acesso a parcelas de poder suficientemente significativas para alimentar muitos apetites mesquinhos.
Em um partido construído com ideais, essa combinação de impotência e poder, quando prolongada, é fatal. Aquele imaginário -partido democrático, de massas, socialista- foi sendo remetido para um terreno mítico.
Talvez tenha aflorado no meu discurso uma mágoa mal resolvida. Durante a última campanha presidencial ficou claro em certo momento que quase certamente perderíamos. Coloquei-me à disposição do partido. Licenciei-me do trabalho, instalei-me em São Paulo.
Recebi uma missão e tentei cumpri-la. Durante a campanha, sugeri a um alto dirigente que abríssemos nossas contas e pedíssemos que os demais candidatos fizessem o mesmo para que a opinião pública conhecesse os financiadores de cada um. Soube então, vagamente, que não poderíamos fazer isso, tínhamos de manter nossos financiadores na sombra. Senti-me traído.
Ao ir à tribuna do 10º Encontro estava determinado a dizer coisas duras. Mas eram muito menos duras do que o que se diz nos corredores. Minha frase sobre a Odebrecht não foi dúbia, nem irônica. Não houve desvio individual de conduta. Tudo decorreu de uma lógica, a das máquinas eleitorais (que, aliás, só no PT, entre os grandes partidos, ainda pode ao menos ser questionada).
Dirceu é inocente, mas não o sistema de poder que governa o PT, aliás com apoio das bases. Boa parte do que resta delas está cooptada. Grandes ambições articulam pequenas ambições, grandes chefes têm sob si chefes menores, empregos mais altos geram empregos para quem está embaixo. Em regiões importantes, como Rio e São Paulo, consolidou-se uma ampla e complexa rede de interesses materiais e de poder que já é impermeável ao debate de idéias, transformado em caricatura de si mesmo.
O que eu queria dizer, se me tivessem deixado concluir, é que na eleição de seu presidente o partido deveria emitir um sinal de que pretendia reagir a dificuldades desse tipo e não posicionar-se por essa ou aquela inflexão do discurso. Não apoiei Hamilton Pereira por ele representar a ``esquerda". Mas porque sua eleição teria sinalizado que, apesar das dificuldades, o PT reafirmava sua disposição de manter-se fiel aos seus ideais de origem. E não me livro da impressão de que, ao eleger Dirceu, a maioria escolheu o quadro mais capacitado para gerenciar o condomínio de ambições que perpassa o partido.
José Dirceu e outros que têm história conseguem manter sua própria integridade. Outros, mais novos, por esses milagres da natureza, também. Mas é em um ambiente de cinismo que está se formando uma nova geração da esquerda brasileira. Uma geração que, por isso, quase ainda não lutou e já foi derrotada.
Muitos vão embora. O PT suga seus quadros, oferecendo a eles apenas uma revolta genérica contra as injustiças sociais. Quando partem, cansados, não levam nenhuma visão de mundo que os ajude a viver com dignidade e esperança, multiplicando na sociedade dignidade e esperança. Talvez isso valha para Lula. Deixa a presidência, exaurido, para buscar atividades onde sua generosidade possa novamente aflorar.
Não há solução orgânica para a crise do PT sem passar por uma solução moral, que é a recuperação da dimensão ética da militância, e por uma solução política, que é o estabelecimento de uma visão de mundo compartilhada, que nos devolva fundamentos comuns. Esperei muito por isso, em vão.
Os melhores dirigentes do PT são pessoas de bem, mas não estão dispostos a promover a necessária renovação intelectual e moral do partido. Estão sempre prontos a fazer uma concessão a mais, que nunca é a última. Nossa bem conhecida tradição de intolerância política encobre outra, menos exposta, de frouxidão com princípios. Minha cabeça funciona ao inverso.
Como isso pode ser dito por um integrante das correntes radicais? Uma hegemonia só se consolida quando abriga dentro de si sua própria oposição -e as forças políticas hegemônicas no Brasil gostariam de reservar ao PT o papel de oposição subordinada. Daí minha simpatia crítica à ``esquerda" do partido.
E quem se nega a fazer o jogo de um ``antixiitismo" primário -que, com frequência, é apenas o jogo dos arrivistas- logo é transformado em xiita pelos porta-vozes de um medíocre senso comum. Embora minhas críticas a esses setores sejam bem conhecidas no PT, nunca neguei essa condição de xiita que me atribuíam para prestar uma silenciosa solidariedade àqueles que têm sido demonizados sem que possam se defender. Aqueles que, mesmo equivocados, mantêm viva a tradição de uma militância eticamente orientada.
Algumas pessoas se referiram ao ocorrido como o fim da minha possibilidade de influir no PT. Não me surpreendo. Depois de 15 anos de militância sem ter acumulado poder pessoal, nem lealdades fisiológicas, nem cacifes que possam ser usados em qualquer barganha -meu único patrimônio são minhas parcas idéias-, nunca me iludi sobre minha condição descartável, contraface de minha própria independência.
Desfilio-me do PT. Aos caros amigos que deixo nele, inclusive José Dirceu, desejo a melhor sorte. Eles mantêm a esperança que era a minha, e que perdi. Tomara que tenham razão.

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