São Paulo, segunda-feira, 28 de agosto de 1995
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EUA se sacrificam para manter liderança mundial

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As últimas batalhas na guerra comercial entre os três grandes blocos regionais delinearam as novas tendências escritas na realidade de um deles: os EUA.
O Japão e a Europa (do marco alemão) também sofreram mutações importantes em seus enfoques e táticas comerciais, no aspecto econômico, mas ainda não dão o salto pendente: o de passar de potências econômicas a potências em toda a esfera da geopolítica atual.
Os EUA, por outro lado, vivem hoje as consequências práticas das profundas transformações ocorridas devido a sua inserção na economia mundial.
Duas delas devem ser mencionadas para se compreender a atual conjuntura do país. O domínio esmagador que ele exerceu sobre o comércio e as finanças internacionais durante o pós-guerra começou a decair a partir dos anos 70, para se estabilizar, no momento, em uma situação contraditória.
Por um lado, os EUA são ainda a maior economia, a mais poderosa e produtiva do mundo, e o dólar continua a ser a principal moeda de reserva.
Por outro lado, a economia norte-americana se vê abatida por uma série de debilidades, com dificuldades e deformações próprias de uma potência hegemônica: déficit crônico em sua conta corrente, desigualdades crescentes, moeda assediada nos mercados internacionais e sistematicamente desvalorizada por autoridades que não acreditam em um dólar forte.
Para os EUA, desde o século 19, o comércio exterior contava pouco ou nada. Hoje, o país não pode permanecer indiferente diante do funcionamento do mercado internacional.
Exporta e importa muito. Seus consumidores e empresários se acostumaram com isso, mas hoje são obrigados a fazê-lo em um mundo em que sua nação não domina mais como antes.
As consequências dessas tendências começaram a aparecer de maneira significativa no início dos anos 80, com um duplo resultado.
Os EUA começaram a sentir um desequilíbrio comercial muito maior do que antes. Ele chegou a mais de US$ 10 bilhões ao mês. O desempenho do país no restante da conta corrente não lhe permite resistir a essa deterioração.
A principal potência mundial se converteu em uma importadora de capital, tendo que atrair fundos japoneses e europeus para equilibrar suas contas, e vendo-se obrigada a vender ativos para saldar dívidas.
Diante dessa evolução, os governos republicanos dos anos 80 (Ronald Reagan e George Bush) escolheram um caminho fácil, mas a longo prazo perigoso.
Em vez de procurar uma moeda forte e sanar seus déficits com o exterior por meio de aumentos internos de desenvolvimento e produtividade (quer dizer, investindo mais em educação, pesquisa e desenvolvimento, e infra-estrutura), optaram por impor uma desvalorização de sua moeda.
Os acordos de livre comércio com o Canadá, Israel e México e o recurso a prerrogativas específicas da única potência econômica que também exerce uma hegemonia política e ideológica representam a materialização do rumo escolhido.
A ruína financeira ocorrida no fim do governo Bush (recessão, desequilíbrio comercial, polarização cada vez maior da sociedade norte-americana), assim como as posições assumidas por pelo presidente Bill Clinton durante a campanha presidencial de 1992, sugeriram a possibilidade de uma mudança na política norte-americana.
Insinuou-se a perspectiva de uma solução interna aos dilemas externos dos EUA: investir mais nas escolas e estradas, terminar de construir o sistema de assistência social iniciado durante a Grande Depressão, a partir de 1929, e reverter a tendência de uma sociedade americana cada vez mais desigual e segregada.
Clinton foi obrigado a abandonar estas falsas esperanças. Desde o início de seu mandato, e de maneira espetacular mediante a decisão de lutar primeiro pelo Tratado de Livre Comércio com o México, e só depois pela reforma do sistema de saúde, Bill Clinton retomou rapidamente o curso definido por seus antecessores.
Lloyd Bensten, secretário do Tesouro do país, impôs uma primeira desvalorização do dólar frente ao iene em fevereiro de 1993, e, cada vez mais, o empenho do novo governo em Washington se concentrou na política externa, descuidando da interna.
Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte), derrota e abandono do programa de geração de empregos e a reforma da saúde: o caminho escolhido por Clinton é evidente, e é o mesmo de Reagan e Bush. Mas os problemas continuam os mesmos.
Ao recuperar a economia, volta a crescer o desequilíbrio externo e há uma acentuação dos traços mais perniciosos de todo o esquema.
É onde nos encontramos hoje, e aí está a explicação do comportamento errante, mas inevitável, do governo nos últimos meses.
Comportamento que confunde e decepciona os aliados do caminho ideológico, mas que constitui destino obrigatório do itinerário pelo qual se optou.
Os EUA se colocaram em uma situação insólita e, aparentemente, aberrante. A última superpotência se transformou em agente de vendas de uma empresa que está perdendo competitividade, mas que ainda pode provocar surpresas.
Ameaça japoneses e chineses, levando à beira do precipício sua briga sobre autopeças, filmes fotográficos e carga aérea.
Abdica de compromissos assumidos diante dos europeus e asiáticos. Insiste em seu apoio irrestrito, quase devoto, à abertura comercial na América Latina, apesar do custo político interno e de todas as evidências da falta de funcionabilidade da abertura nesses países.
Esta tragicômica transmutação surtirá efeito? A curto prazo, não é impossível. O garrote já não é tão forte como antes, mas subsiste.
Os EUA conservam a força necessária para ``convencer" gregos e troianos das vantagens do entendimento com Washington, e do terrível custo de qualquer confronto duradouro.
A contradição persiste: se a terra de Clinton, Woodrow Wilson e Franklin Roosevelt ocupa o lugar de primeira economia e potência militar do mundo, não pode se converter em uma agência comercial, ou em um ``caixeiro-viajante", como dizia De Gaulle. Ser superpotência não pode estar a cargo de qualquer um, mas também ninguém pode deixar de sê-lo por cansaço ou decisão.

Tradução de Lise Aron

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