São Paulo, quarta-feira, 30 de agosto de 1995
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Qual é a crise do PT?

JOSÉ GENOINO

No artigo em que justifica sua desfiliação do PT (Folha, 23/8) César Benjamin levanta uma discussão pertinente não só para o PT, mas também para os demais partidos. Infelizmente o debate se vinculou, inapropriadamente, com a disputa da direção do partido.
Os eventuais erros que o PT possa ter cometido no financiamento das campanhas não devem ser debitados a essa ou àquela corrente. O próprio partido, no seu todo, é responsável por não adotar um conjunto de regras de conduta dos candidatos e das direções em relação a essa questão. A rigor, quando se trata de finanças, o PT funciona à base da informalidade. Escrevo este artigo com intenção de me inserir positivamente nesse debate, procurando uma solução para os passos futuros do PT.
As preocupações de Benjamin sobre a conduta do partido são procedentes, mas ele faz um diagnóstico sobre a natureza da crise e esboça uma concepção sobre a natureza de um partido que discordo. Supõe ele que a principal crise do PT é de natureza ética e, dado o gesto drástico de se desfiliar do partido, é possível concluir que ele já não alimenta esperanças sobre o talhe ético do PT.
Advoga uma visão de partido como um agrupamento ético voltado, prioritariamente, para uma ação destinada a afirmar princípios e chega a ver uma natureza malévola intrínseca ao poder.
No meu juízo, a crise do PT é fundamentalmente política. Tem por base a ausência de um referencial programático capaz de garantir a unidade de uma ampla maioria partidária. O PT nasceu um partido reivindicativo de direitos e organizador dos movimentos sociais.
A evolução política da sociedade exigiu do PT que se transformasse em um partido programático, capaz de apresentar soluções tanto no governo como na oposição. Por motivos que não cabe aqui analisar, o PT não foi capaz de dar esse passo com eficácia.
O PT hoje, se quiser permanecer fiel às suas origens e à sua vocação transformadora, deve voltar-se de forma processual, mas conscientemente, para o poder. Em toda realidade sóciopolítica o poder é o principal instrumento de transformação. Um partido consciente de sua responsabilidade não descaracteriza seus valores por dispor de poder.
Voltando ao tema da ética proposto por Benjamin, deve-se evitar abordá-lo a partir de um ângulo maniqueísta. Não se pode supor que os partidos de esquerda são formados de santos e os outros, de demônios. Um partido não pode ser confundido com uma comunidade ético-fundamentalista.
Em determinadas escolhas políticas, que comportam paradoxos éticos, nenhum código de ética será capaz de assegurar, de antemão, qual a melhor escolha. A política, por se situar na esfera da liberdade humana, comporta escolhas, comporta determinados riscos.
Mas se a política não pode ser confundida com a ética, isso não significa que a ação política não deva ter referência em valores. Assim, se se assegura à ação política uma referência a ideais, isso não pode ser traduzido como uma ação política fundada no puro idealismo. Com exceção dos fanáticos, ninguém faz política por idealismo puro.
Na política sempre estão presentes interesses, coletivos e individuais. Os interesses podem ser os mais nobres, como a igualdade. Nas sociedades modernas mesmo os partidos de esquerda devem levar em conta a trama complexa e contraditória de interesses sociais.
Na prática política interesses coletivos articulam interesses e motivações individuais, que vão desde o prazer pela ação, a busca de honra, a realização do sentimento de dever, até interesses materiais bem específicos.
Os interesses individuais são legítimos desde que balizados pela moralidade, pela conduta democrática, pelo companheirismo etc. Nos partidos, carreirismo e oportunismo, entre outros comportamentos, são, realmente, desvios de conduta. Mas em um partido democrático é legítimo que os interesses individuais se articulem com os interesses partidários. Caso contrário, teríamos um partido onde os chefes ou a burocracia ditariam o que é legítimo ou não.
Deve-se abandonar no PT a presunção de que exista um partido único portador da verdadeira moralidade. Nem a esquerda é santa e nem o PT está corrompido. A vantagem do PT, em relação aos outros partidos, está no que defende e em ser um partido que procura fazer política com coerência com aquilo que defende. Mas é exatamente aqui que reside o perigo.
Na concepção da esquerda tradicional sempre imperou a máxima de que os fins justificam os meios. É preciso perceber que fins e meios devem estar de acordo, que somente determinados meios podem ser legitimados pelos fins.
A prática de um partido tem de se assemelhar aos valores que defende. Um partido não pode defender um conjunto de regras para os outros e adotar práticas que as contradizem. A coerência é incompatível com um sistema de dupla moral: uma para ser pregada e outra para ser praticada.
Se o discurso que fazemos para os outros deve valer para nós mesmos, na questão que diz respeito ao financiamento de campanhas o PT deve praticar aquilo que ele entende deva ser válido, legalmente, para todos os partidos.
Claro que o PT deve levar em conta a legislação para viabilizar-se eleitoralmente. Mas, se a legislação é falha, o PT deve pautar sua conduta em um conjunto de regras corretas a serem propostas e institucionalizadas para todos.
É na discussão sobre legislação eleitoral e regras de financiamento de campanhas que o PT deve encontrar a solução para seus dilemas sobre essas questões. A solução, portanto, é pela via da política, evitando-se o vale-tudo do eleitoralismo, e não via purgação moral.
Nesse particular, acredito que o critério da transparência, da publicidade e da limitação das doações para campanhas é o melhor ponto de partida para o PT definir sua posição sobre o tema.

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