São Paulo, sexta-feira, 1 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma história a ser contada

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Há pouco mais de três anos fui vítima de uma perversa tentativa de extorsão, acompanhada de todos os ingredientes que estamos acostumados a ver em filmes de ficção e imaginamos nunca acontecer conosco. A partir dessa desgastante experiência, que não desejo nem para o meu maior inimigo, cheguei a uma conclusão, que quero dividir com os leitores: por mais poderosos e ameaçadores que sejam os extorsionários, devemos enfrentá-los quando temos determinação e a verdade ao nosso lado.
A história começa antes do início da tentativa de extorsão, quando dirigia a Secretaria Estadual da Saúde. Na época, determinado a organizar o sistema e eliminar focos de corrupção, praticamente encerrei as atividades (boa parte delas apodrecida) do Inamps em São Paulo.
Os seus trabalhadores, sérios e competentes (grande maioria), foram aproveitados na nova estrutura, unificada e descentralizada, que estava sendo implantada. Essa foi uma ação básica que, em meio a muitas outras, permitiu triplicar a cobertura e dar maior racionalidade na aplicação dos recursos.
O resultado foi a melhoria de todos os índices que medem a qualidade da saúde da população. Obviamente, aqueles que se beneficiavam das distorções com favorecimentos escusos ficaram descontentes, mas esperavam que eu deixasse o governo para agir.
Quando isso ocorreu, montaram através do Inamps uma auditoria para rever todas as minhas contas já aprovadas e encontrar, a qualquer custo, irregularidades, mesmo que falsas.
Fragilizando-me com acusações que eram colocadas na imprensa, prematuramente e com muito alarde, enfraqueciam a resistência contra a desmontagem, que se iniciou no governo Collor, de um sistema de saúde unificado, descentralizado, eficiente, humano e sério que se implantara em São Paulo e que poderia prosperar no Brasil.
Três anos depois ficou provado, por parecer conclusivo do Ministério da Saúde (Ciset), que todas as ações por mim praticadas, com os recursos repassados pelo Inamps, foram "morais, éticas, regulares, legais, necessárias e com ótimos resultados".
Naquele momento, entretanto, em meio a inquéritos, investigações e falsas notícias, surgiram os bandidos que ofereceram um negócio aparentemente salvador: o fim das denúncias em troca de dinheiro. Imaginavam eles que, acuado e fragilizado, buscaria meios para aceitar prontamente e até aliviado a proposta. Descobri em mim, naquele momento, uma coragem que não imaginava ter.
Ela era do mesmo tamanho ou maior que a injustiça e desonestidade dos que me extorquiam. Curiosamente, à medida que a minha resistência aumentava, aumentava também a violência dos extorsionários. Intensificaram a agressividade pela imprensa, ameaçaram-me de todas as formas policiais, invadiram minha casa e meu consultório com mandado de busca e apreensão diante dos meus filhos assustados e pacientes.
Denunciei a tentativa de extorsão à imprensa, que não deu atenção, exceção feita à Folha, que colocou um de seus quadros mais importantes para acompanhá-la. Possivelmente os demais achavam que eu tentava dissimular minha "culpa" fazendo-me passar por vítima.
Agi como um cidadão comum, levei o caso às autoridades de São Paulo, que investigaram com rigor e competência, localizaram os culpados e os encaminharam à Justiça. Esta, após três anos de alentado processo, os condenou com penas de cinco ou mais anos de prisão (para os amantes de tramas policiais valeria ler os depoimentos dos réus e a sentença do juiz que os condenou).
O mandante visível da extorsão era exatamente o delegado da Polícia Federal (que, como instituição, agiu com absoluta lisura e responsabilidade) encarregado do inquérito que averiguava minhas "falhas" na Secretaria da Saúde. Faziam parte da quadrilha -que se apoiava na cumplicidade de funcionários do próprio Inamps (ainda soltos)- um empresário e um estelionatário.
Diziam eles ter apoiamentos políticos importantes. Essa armação -que é mais ampla e possivelmente causou muitas vítimas que silenciaram (algumas se solidarizaram comigo pelo telefone)- tinha duas finalidades, além da sórdida obtenção de dinheiro: a vingança pelos interesses que contrariei e que eles não podiam defender, por serem totalmente ilegais, e a tentativa de desmoralizar publicamente o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, que produziu seus avanços mais concretos no Estado.
Com isso, abriram terreno para a recentralização das verbas, que tantas distorções e desvios voltou a permitir, e levou ao caos, que perdura até hoje, o nosso sistema de saúde, com enorme prejuízo aos cidadãos.
Às vezes me pergunto se valeu a pena ter feito o que fiz na saúde e, como consequência, enfrentado, durante anos, criminosos vorazes, com risco de vida e ter sido atacado, injustamente, pela imprensa, naquilo que mais prezo e procuro manter sem mácula que é a minha honorabilidade, mantida em todos os cargos que ocupo ou ocupei: professor titular da USP e da Unicamp, reitor desta última e por duas vezes secretário de Estado -na Educação e Saúde-, presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia e assessor da OMS.
O fato de os criminosos estarem presos não me satisfaz ou ressarce dos prejuízos morais, mas quando penso que minha ação na Secretaria da Saúde redundou em mil mortes a menos de mulheres todos os anos, pelo Programa de Controle de Câncer Uterino; no fim das 300 mortes anuais de crianças por sarampo e de 7.000 mortes a menos de crianças, todo ano, com o decréscimo de 33 para 26/1.000 da mortalidade infantil, concluo que faria tudo outra vez.

Texto Anterior: As Nações Unidas no seu cinquentenário
Próximo Texto: Clausura; Missão cumprida; Resgate da indignação; Vida ou morte de Deus; Noção contraditória; Risco zero; Lotação; Venda do Biológico
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.