São Paulo, sexta-feira, 1 de setembro de 1995
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A guerra e o crime

CARLOS HEITOR CONY

O governo insiste em lembrar que a anistia foi geral, serviu para os dois lados envolvidos na guerrilha ideológica durante os anos de regime militar. Tudo bem: repressores e reprimidos sabiam o que estavam fazendo, matar e morrer é a lei fundamental de uma guerra.
Uma coisa é matar e morrer em combate. A anistia é feita para esquecer as duas pontas da corda. Contudo, ela não devia prevalecer para a tortura -que é a estupidez dentro da estupidez.
Dois exemplos da mesma questão: Lamarca foi morto dormindo, estava doente, mas sua morte não foi precedida de tortura. O episódio, embora sujo, pertence à guerra revolucionária.
Vladimir Herzog também foi assassinado, mas em condições bestiais. Morreu em consequência das torturas recebidas. É outro caso: a sociedade precisa conhecer como essa tortura foi praticada e por quem.
Fui preso seis vezes durante os anos de chumbo. Não tocaram em mim, mas passei algumas noites ouvindo os gritos dos torturados. Não há anistia que me faça esquecer essa violência. Qualquer ser humano, na mesma situação, sentiria o mesmo que senti: náusea no estômago, asco na alma.
A tortura transcende a morte. Afinal, todos morreremos um dia, assim ou assado, com ou sem razão. A morte não avilta. A tortura, sim.
Houve vítimas fatais de ambos os lados. Que o Estado pague as indenizações e esqueça. A anistia foi feita para isso mesmo. Mas os torturadores pertencem a outra categoria, são animais de outra espécie e estão por aí, soltos, alguns até em cargos de confiança.
Os guerrilheiros dos anos 60 e 70 também mataram. Mas não se conhecem casos de tortura praticados por eles. O embaixador americano, sequestrado em 1969, chegou a elogiar seus carcereiros, sua atitude foi julgada politicamente incorreta, mas ele preferiu ficar com a verdade, embora tivesse corrido risco de vida.
Essa a diferença entre a anistia para a luta e o castigo para a estupidez. Devemos esquecer a guerra. Mas nunca esquecer o crime.

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