São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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A criação da história

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

São mais de 500 cartas escritas ao longo de 15 anos. No prefácio que escreveu em 1983 a "Os Reis Taumaturgos", Le Goff dizia esperar que a publicação daquelas cartas "nos traga precisões, se não revelações" sobre Bloch e sua obra. Esperança em parte realizada já no primeiro volume, que cobre os anos 1928-1933. Nele, além das 184 cartas entre os dois co-fundadores dos "Annales", incluíram-se outras, dirigidas por Bloch a Émile Bréhier, Marcel Mauss e Claudio Sanchez-Albornoz. Em toda essa correspondência, aparecem com frequência menções e comentários da dupla Bloch-Febvre a nomes como Henri Berr, Maurice Halbwachs, Louis Halphen, Henri Hauser, Camille Jullian, Georges Lefebvre, André Piganiol, Henri Pirenne, Augustin Renaudet, François Simiand. É boa parte da rica história intelectual do pré-guerra que desfila diante de nossos olhos através dessa vasta produção epistolar.
Em linhas gerais, ela nos informa sobre três pontos. O primeiro deles, questões editoriais e administrativas dos "Annales d'Histoire Économique et Sociale". Questões que deram à correspondência um tom muito mais profissional que pessoal. Fato compreensível, mas que não deixava de incomodar Marc Bloch em setembro de 1929: "É inevitável que nossas cartas sejam mais dos 'Annales' que de amizade. Mesmo assim, gostaria de ter notícias suas" (pág. 208).
Em segundo lugar, com aquelas cartas penetramos nos bastidores da vida acadêmica da época. Tomamos contato com fatos pitorescos como, por exemplo, o relatado por Bloch, em agosto de 1928, sobre o estado de espírito de Pirenne, "feliz como um garoto", graças à sua primeira viagem aérea, de Malmo a Bruxelas (pág. 49). Ficamos conhecendo o clima tenso que cercava os concursos de ingresso na carreira universitária francesa, com seus meandros nem sempre claros e seus critérios nem sempre estritamente técnicos. Em função disso, Lucien Febvre não teve sucesso na sua tentativa de ser admitido na Sorbonne e conheceu dificuldades para ingressar no Collège de France. Marc Bloch viu frustradas duas vezes suas esperanças quanto ao Collège e teve de se contentar mais tarde com a Sorbonne.
O forte desejo de ambos trabalharem em Paris devia-se, em parte, à atmosfera de concorrência e de inveja que dificultava a vida na universidade de Estrasburgo, onde estavam desde 1919. Sem laços familiares com a região, a situação era especialmente incômoda para Lucien Febvre. Daí seu desabafo na carta que dirige ao amigo durante as férias de Páscoa de 1929: "Não é de Estrasburgo que eu te escrevo -felizmente. Começo a renascer" (pág. 136). No entanto, ele estava consciente, não bastava deixar a província para escapar dos vícios da vida acadêmica. Também em Paris existem naquele meio "indivíduos desprezíveis e de paixões baixas" (pág. 267), caso do historiador Louis Halphen, que, segundo ele, se considerava "um messias" (pág. 127), usava "de astúcia" para criar dificuldades aos concorrentes (pág. 259).
As cartas revelam ainda uma questão bem mais delicada: algumas vezes os dois amigos viram-se diante da incômoda possibilidade de terem de concorrer a uma mesma e única vaga. Daí Bloch, oito anos mais moço, ter em 1928 retirado sua candidatura ao Collège para não dividir os votos e favorecer terceiros. Estratégia naturalmente aprovada por Febvre: "Creio que sua decisão é sábia... É evidente que não entraremos, nem um, nem outro, nos enfrentando" (pág. 116). Contudo, a questão se colocou novamente em 1930, a propósito da École des Hautes Études, e amigos de ambos se preocuparam com a idéia deles entrarem "em conflito direto e brutal" (pág. 265). Por isso Febvre insiste que "devemos, os dois, chegar a Paris. Por nós, porém mais ainda pelo que representamos. É relativamente fácil, mas com uma condição: não façamos nada que possa dar a impressão que somos competidores, rivais" (pág. 266).
Em terceiro lugar, as cartas nos transmitem algumas preocupações metodológicas da dupla Bloch-Febvre. Fica claro que eles tinham consciência de estar realizando, nesse campo, uma "pequena revolução intelectual", conforme as palavras de Bloch em 1929. Tarefa difícil, que implicava superar diversos obstáculos, pois é preciso "adaptar os outros a ela, e nos adaptarmos nós mesmos a ela. Uma revista como a nossa, é forçosamente uma criação contínua" (pág. 205). Segundo Febvre, escrevendo a Johan Huizinga em 1933, tratava-se de uma "obra de educação e de alargamento intelectual" (pág. 462). Se entre os colegas estrangeiros esse projeto teve desde o início boa aceitação, "devemos contar, do lado francês, com hostilidades muito fortes" (pág. 50), estimava Bloch.
Mas o maior problema estava na escassez de trabalhos metodologicamente identificados com a revista. Lucien Febvre queixa-se disso em junho de 1928, repete a observação em agosto de 1929, Marc Bloch bate nessa tecla no mês seguinte e a reafirma em 1933 diante do convite do amigo para participar da "Encyclopédie Française", que este coordenava. Sobretudo, avalia Bloch, faltam colaboradores da Inglaterra, dos Estados Unidos e da América Latina (pág. 203). O pior, acrescenta Febvre em julho de 1929, é a baixa qualidade dos artigos recebidos (pág. 142). E nem todos podiam ser recusados, fosse devido à pequena oferta, fosse por razões de política acadêmica. Foi o que ocorreu, por exemplo, logo no primeiro número da revista, com "o manuscrito de Glotz. Bruuuu! Ele me dá frio na espinha" (pág. 105). Ou ainda, quando das propostas insistentes de Henri Sée, a quem não se podia "dizer, brutalmente, não" (pág. 232).
De qualquer forma, para eles, as resenhas críticas, as notícias sobre pesquisas em andamento, as informações sobre instituições e pesquisadores, eram tão importantes quanto os artigos. Sobretudo resenhas de "livros capitais para a história, sem serem tecnicamente livros de história", caso do "Origines del Español", de Menéndez Pidal. Obras, justifica Bloch, que "arriscam passar desapercebidas de historiadores muito isolados na sua especialidade" (pág. 509). Ademais, no essencial, tanto as resenhas quanto os artigos devem ter um mesmo objetivo, colocar problemas, mais do que resolvê-los.
Postura nova, que não facilitava as coisas com os autores, "esta raça inferior e aborrecida" (pág. 233), que torna "as funções editoriais espinhosas", na opinião de Febvre (pág. 238). Exigente e irônico, ele não poupava franceses, como Paul Mantoux ("despreza todo trabalho científico", pág. 248) ou Henri Sée ("o príncipe da inteligência", pág. 277). Nem estrangeiros, como o americano Earl Hamilton, que escreve "artigo de um míope", artigo "morno e pouco útil", em uma linguagem "pesada" (págs. 280-282, 294), ou o sueco Eli Heckscher, que com sua documentação "teria podido tornar (seu artigo) extremamente interessante", mas não o fez (pág. 290).
Enfim, da mesma maneira que, com razão, Jacques Le Goff pôde dizer de "L'Apologie Pour l'Histoire", que "este livro inacabado é um ato completo de história", talvez possamos afirmar que "Correspondance", por não ser um livro de história, é uma rica obra sobre historiadores.

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