São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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Da salvação à dominação

ROLF KUNTZ

Les Arts de Gouverner - Du Regimen Médieval au Concept de Gouvernement
Michel Senellart Seul/Des Travaux, 316 págs. R$ 54,40
Punir quem quebrou o Banco Econômico, defender o pequeno correntista, resguardar o sistema financeiro, preservar o Tesouro e manter a autoridade do Banco Central: esta agenda seria provavelmente inteligível para um homem como Giovanni Botero, se lhe explicassem alguns detalhes técnicos. Em troca, ele poderia dar lições de prudência sobre o manejo das finanças públicas e sobre o endividamento do Tesouro. Seu livro "Da Razão de Estado", concluído em 1589, tem ainda a forma de uma coleção de conselhos ao príncipe, mas a matéria é nova. Nesse tratado, a virtude política e a prudência consistem, antes de mais nada, na gestão competente dos recursos públicos e na promoção da agricultura e da indústria. A técnica do poder implica uma nova percepção do mundo da riqueza e do cotidiano dos súditos.
No século 16, escreve Michel Senellart em "Les Arts de Gouverner", o espelho do príncipe se converte em livro de Estado e "a contabilidade das forças substitui o catálogo das virtudes". A grande mudança, porém, não é a passagem de uma visão moral a uma visão política das coisas, mas o apagar-se progressivo da imagem do príncipe, dando lugar à figura da "grande máquina" do Estado. "Governar já não é tanto submeter os desejos dos indivíduos quanto dominar forças coletivas (recursos, população, armas, aliados)".
O livro de Senellart conta a evolução da idéia de governo desde a patrística até o século 17, quando o Estado moderno está claramente consolidado. A primeira parte, "Reinar e Governar" contrapõe desde o título dois conceitos que balizam a discussão: o conteúdo de "regimen" pode ser muito mais amplo que o de "regnum" e a sua identificação corresponde a uma das grandes mutações da história política ocidental. O conceito de governo pertence inicialmente ao vocabulário eclesiástico. Precede a noção de Estado e evolui em três etapas, resumidas na parte inicial e exploradas em detalhe nas duas seguintes. Na exposição introdutória, a divisão, é claro, é muito esquemática e simplesmente ressalta a dominância de certas concepções.
Na primeira etapa, até o século 12, "regimen" precede e condiciona o "regnum". Reinar é cumprir uma tarefa religiosa, vinculada à salvação das almas e à disciplina dos corpos. O governo, "regimen", não se confunde com dominação e pode corresponder a tarefas múltiplas, não necessariamente subordinadas a um único poder terreno. A função política de controle e de repressão é necessária por causa da queda e da fraqueza da carne.
Na segunda etapa, iniciada no século 13, "o 'regimen' se confunde com o 'regnum' ". A mudança conceitual tanto reflete a formação das grandes monarquias quanto a naturalização do universo político, a partir da redescoberta de Aristóteles. A identificação de governar e reinar é contemporânea da formação da doutrina da soberania. A teoria política aristotélica, especialmente a partir de sua incorporação por São Tomás de Aquino, fornece a base para conceber a autonomia da política diante da religião. Isto não é novidade, embora se continue a ensinar, em muitos cursos, que essa autonomia nasce com Maquiavel. Mas o objetivo de Senellart não é mostrar a precedência de São Tomás, e sim descrever como se transfigura, no século 13, a noção de governo.
A terceira fase "corresponde à instrumentalização do governo", descrito como "fenômeno geral nas grandes monarquias administravas no século 17". Completa-se um ciclo: no início, o governo, direção das almas e disciplina dos corpos, é visto como a razão de existência do poder público, isto é, da realeza; no fim, é uma função desse poder, "essencial, sem dúvida, mas distinta do aparelho solene da soberania".
Subordinada à tarefa de salvar as almas, a função real, na primeira etapa, é descrita como parte da ordem eclesial. Isso exige do rei elevadas qualidades morais: governar ("regere") é também corrigir, e quem corrige deve antes de mais nada ser capaz de autogoverno. O governante deve ser um modelo para os governados. O desenho dessa figura exemplar é o objeto dos "specula principum" (espelhos dos príncipes), fórmula dominante, durante a maior parte da Idade Média, dos manuais escritos para uso dos reis. Mirar-se nesse modelo é obrigação do governante: daí a denominação de "speculum" (espelho). A história da literatura política, até o século 16, se confunde, em grande parte, com a evolução dos "specula". A fórmula se mantém, mas não o conteúdo. O "Príncipe", de Maquiavel, ainda pertence ao gênero, lembra Senellart, apesar do abismo entre o seu universo teórico e ideológico e o dos antigos espelhos.
O "De Regno", de São Tomás, também segue a fórmula dos "specula principum", mas já nesse livreto aparece a concepção naturalista da política. A função do governante não se confunde, mais, com a missão de salvar as almas e disciplinar os corpos, como se o rei fosse um auxiliar da igreja. O homem continua a ter, sim, uma finalidade sobrenatural, mas a busca das condições de aperfeiçoamento é uma exigência de sua natureza. Não haverá, para o homem, condições suficientes de realização moral e intelectual se não houver, também, as condições de vida material que só a sociedade política proporciona. O Estado é uma exigência na natureza humana. Ao sustentar este ponto de vista, Tomás de Aquino simplesmente reproduz Aristóteles. E o reproduz consistentemente, aceitando como consequência a distinção entre sociedade familiar e sociedade estatal, entre virtude pessoal e virtude política. Isso implica reconhecer, no governante, virtudes específicas. São as virtudes necessárias à boa condução do Estado, à criação e à manutenção das melhores condições de vida coletiva.
Governar, a partir daí, já não é cumprir uma função semelhante ao ministério espiritual, nem o gládio é concebível, mais, como subordinado à defesa da fé e destinado a reprimir o corpo degradado pela falta original. A transformação não se dá, no entanto, por um salto. Aristóteles fornece o arsenal de conceitos para fundar a nova concepção de sociedade. Ainda é uma concepção de tipo finalista, mas a finalidade é entendida como natural. Um mesmo conjunto de princípios serve à interpretação da vida coletiva, em seus vários níveis, e das mudanças observáveis no mundo material, como o crescimento das plantas e o movimento dos corpos graves. Mas o caminho para a mudança estava dado antes da difusão da teoria política aristotélica. Elementos importantes para a construção conceitual do Estado, como a noção de "persona publica" vinham sendo desenvolvidos em obras anteriores às de São Tomás. Senellart dedica uma longa análise ao "Polycraticus", de John of Salisbury. Não deixa de ser curioso que o grande crítico de Henrique 2º, um dos grandes construtores da autoridade monárquica, tenha sido, apesar de sua posição cristã tradicional, "o primeiro publicista, no século 12, a comparar o estado com um organismo vivo e a fazer da utilidade pública o fim do poder real".
As grandes etapas da evolução do conceito de governo correspondem, também, a diferentes fases de valorização da visibilidade e da ocultação do poder. A visibilidade se vincula, primeiro, ao caráter exemplar exigido da figura real. Há uma longa transformação até o segredo ser concebido como exigência normal da razão de Estado. Senellart explora essa transformação, desde o surgimento do secretariado (o parentesco entre secreto e secretário é evidente), no fim do século 13, até o século 17. Maquiavel é descrito como figura de passagem, ainda presa à idéia da visibilidade, embora, é claro, por motivos que pouco ou nada têm que ver com a idéia medieval do exemplo. A "política invisível", observa Senellart, "supõe a existência de uma potente máquina de Estado, que obedeça prontamente às ordens do soberano". Em Maquiavel, porém, o "stato" se confunde com o príncipe, e este "não pode escapar do imperativo de ser visto", mesmo que se trate de exibir aos homens uma imagem fabricada. Assim, "a passagem da exemplaridade à gestão hábil da opinião se efetua numa economia do visível", da qual o príncipe constitui o centro. A mudança se completará com o absolutismo, quando a arte de governar incluirá a capacidade de ver e de saber, e não mais de ser visto.

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