São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995
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As neurociências atacam a depressão

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Talvez tenha sido a capa colorida o que me atraiu nesse livro. É um linda imagem de Valério Adami, intitulada "Freud Viajando para Londres". A cara do pai da psicanálise é pintada em azul, o chapéu em lilás e, por baixo dos aros pretos dos óculos, manchas azuis substituem os olhos.
Quando escolhi o livro na prateleira da Leonardo da Vinci, uma tradicional e amada livraria francesa do centro do Rio, havia mais coisas na minha cabeça. Para começar, uma sensação de que se fala mais da cabeça, quem sabe uma consequência de estarmos em plena década do cérebro humano.
Os alemães isolaram um vírus e o apontam como causador da depressão. Bórnia é o seu nome. Se a descoberta for confirmada, naturalmente o vírus terá seus nomes nacionais. Há alguns anos atrás, nas praias do Rio, o chamaríamos de vírus da fossa.
A "Time" publica uma capa intitulada "Blues do Século 20", afirmando que a nova ciência da psicologia evolucionária está demonstrando que as raízes das doenças mentais modernas podem ser encontradas em genes que viajam de geração para geração.
Esse novo campo examina a possibilidade de que o sentido de nossa insatisfação seja provocado pelo desencontro entre nossa estrutura genética e o mundo.
Um Darwin modernizado é colocado em cena para mostrar como o cérebro humano foi evolutivamente desenhado pela seleção natural e como entra em choque com instrumentos modernos que não faziam parte dessa atmosfera ancestral em que ele evoluiu.
Se consideramos também as ofertas da química, que mantêm milhões de pessoas numa boa tomando seu Prozac e vivendo -aparentemente- sem conflitos, veremos que, como diz Julia Kristeva, não se vive o fim da história, mas o fim da possibilidade de falar a própria história.
O cerco que a química e as neurociências estendem em torno da psicanálise tinha de estar naquele livro. Ele contém conferências realizadas na casa de Freud em Londres. E não me desapontou. Em nosso idioma, temos uma expressão para isso: pajelança.
É isso aí: estava diante de uma pajelança da psicanálise ameaçada. Cornelius Castoriadis, que já se dedicou à política editando a revista "Socialismo ou Barbárie", comparece agora como psicanalista, tentando inverter uma célebre afirmação de Freud: "onde estava o id, o ego deve se instalar".
Castoriadis, que vê na psicanálise um grande instrumento da emancipação, não concorda com a possibilidade de a consciência desalojar os desejos obscuros, pois acredita que o fluxo do inconsciente é permanente, podendo existir entre as duas instâncias uma renovada negociação. Em vez de o ego se instalar no id, ele propõe que o espaço do ego dê chance para que o id possa emergir.
"A importância disso", afirma, "não reside na eliminação do conflito psíquico: ninguém jamais garantiu que estamos destinados a uma vida interior sem conflitos. A importância está na instauração de uma subjetividade auto-reflexiva que libere a imaginação radical."
Diante dessas certezas, Castoriadis afirma que análise jamais pode se realizar com êxito sem uma grande atividade do paciente, lembrando, repetindo, elaborando.
Dessas conclusões, pode saltar então para o modelo de sociedade que a política precisa produzir: a criação democrática de instituições que, internalizadas, não reduzam, mas ampliem a capacidade de o indivíduo se tornar autônomo.
Um ambicioso programa que de certa maneira pode ser encontrado nas posições de outro conferencista, James Hilman, autor do livro "Cem Anos de Psicoterapia e o Mundo Está Ficando Pior". Hilman quer mais política. Para ele, depois de tantas confissões, talk-shows, revistas destinadas a vasculhar a vida íntima das pessoas, sexo e afetividade não são mais o "inconsciente", mas estão na ponta da língua:
"Tornamo-nos analistas e analisandos superconscientes, alertas e sutis indivíduos interiorizados, mas cidadãos muito inconscientes."
Trabalhando na seleção de jovens psicanalistas, Hilman se deu conta de que suas perguntas, antes da admissão, se referiam a tudo menos política. A partir daí, chegou à conclusão de que, na verdade, a prática e a teoria tinham desembocado num beco sem saída: a política não é psicológica e a psicologia não é política.
Sintetizada assim, a tese dá a impressão de que se trata apenas daquela crítica rasteira de que a psicanálise é "alienada". Mas Hilman vai mais longe, mostrando que o conceito de indivíduo que estava na base do apogeu do colonialismo e na fase industrial do capitalismo não existe mais.
Daí sua preocupação com um novo tipo de análise, uma terapia além do egocentrismo. Hilman quer mudar na base uma idéia da psicoterapia: o ego determinado por sexo, história familiar, subjetividade. No seu lugar, o ego seria interiorização da comunidade.
Na verdade, já ouvi essa história em outros momentos e posso atestar que não deu certo: se o ego fosse uma interiorização da comunidade, como explicar que na mesma comunidade, no mesmo microcosmo familiar apareçam tantas diferenças, tantas variadas maneiras de elaborar a influência exterior?
Mas o livro editado pela Rutledge contém dez ensaios interessantes e um título insultuoso para os amantes de uma especializada precisão científica: "Especulações Depois de Freud: Psicanálise, Filosofia e Cultura".
Se me detive um pouco nele foi apenas porque o considero uma feliz coincidência que me tenha caído nas mãos agora.
As neurociências atacam, algumas tentando fazer das frustrações um instrumento do sucesso; os alemães, quem sabe, vão acabar lançando uma vacina contra a depressão; os neodarwinistas investindo nas pesquisas genéticas -tudo isso acontece enquanto milhões de pessoas fazem filas para comprar o Windows 95, apesar dos conselhos dos especialistas para que esperem um pouco.
Cem anos de psicoterapia e continuamos adorando ícones; só que agora eles não representam mais grandes tensões interiores, mas funções de um sistema operacional de computação.
A pajelança de Londres revela que a psicanálise é uma grande parceira no combate a esse conforto moderno no qual a química e a biogenética se oferecem como alternativa ao desejo de saber a própria história.
Aliás, alguns conferencistas, como Julia Kristeva, parecem não ter mais pacientes como antes -pacientes com sintomas. Em muitos casos, já são pacientes com sintomas alterados por uma terapia química; interpretações e cápsulas se entrecruzam num fim de século que não consegue alcançar a satisfação. Enfim, para não dizer que especulamos tanto sem usar uma palavra em alemão: é uma bórnia.

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