São Paulo, segunda-feira, 4 de setembro de 1995 |
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Madredeus faz 'fadoterapia' em São Paulo
LUÍS ANTÔNIO GIRON
O iluminador exclusivo do grupo, Paulo Leston, deve ter tomado aulas com Gerald Thomas. Seus focos indiretos fizeram o pequeno público pairar por duas horas (com intervalo) num limbo de gelo-seco e silhuetas longínquas da grande cantora Teresa Salgueiro. A platéia estilo colônia portuguesa que encheu cerca de dois terços do auditório, de 518 lugares, parecia ter saído de um freezer. Esperava no grupo o microondas redentor. No início, aplaudiu num clima introspectivo de frigorífico. Levitou só no final, quando Teresa arriscou o samba "Você e Eu" (Carlos Lyra-Vinicius de Moraes), em perfeito português acariocado. O público saiu purgado da insensibilidade. A "fadoterapêutica" do Madredeus combina elementos típicos da música lisboeta com new age, minimalismo e pop de vanguarda. Muitas vezes os temas melódicos são ligeiros e as harmonias chegam perto da ingenuidade. Tudo se baseia em notas sustentadas e pedais. Teclados "atmosféricos", base de violoncelo e solos de violão acadêmicos se somam a intervenções quase anedóticas do acordeão. A instrumentação remete ao tango laboratorial de Astor Piazzolla, músico argentino que firmou o violoncelo na música popular, instrumento hoje tão vulgarizado. O Madredeus elimina a guitarra portuguesa, para deixar a lusitanidade no nível da sugestão. Assim evita o caráter explicitamente étnico. Mas, ao raspar a cultura peninsular de seus traços visigóticos, chega a uma camada profunda que faz a base inconsciente daquela cultura: a tradição celta. Não erra quem disser que Madredeus lembra a roda semibreves da cantora irlandesa Enya. A maior parte das músicas é do violonista Pedro Ayres Magalhães, ex-pós-punk da banda Heróis do Mar. Apóstata da causa do rock, ele explora temas e letras etéreas quase sempre do ponto de vista feminino. Um certo ar místico pós-moderno envolve as composições. O misticismo, porém, nunca diz a que vem. Deixa o trabalho às metáforas. Basta ouvir os versos nefelibatas desta canção, intitulada "Ajuda": "Sou assim/ Sou este mistério/ Maior que tudo/ Que acontece/ No meu mundo". Ausência, saudade, mar, sonho, rio, cidade, silêncio, luar, viagem, mistério e fantasia são palavras que se repetem nas canções e lhes fornecem a coloração. Foram feitas para a a voz de Teresa. Ali ganham densidade. Motor do Madredeus, a cantora de 26 anos perfaz o imperfeito. Converte boas canções ambíguas em peças de arte definitiva. Ela impressiona pela postura estática em palco em contraste com um timbre vibrante. É soprano ligeiro coloratura; possui um "metallo" confortável nos agudos e produz notáveis sonoridades nas altas esferas, quase sem se mover. O mais curioso está em ela representar a tímida em cena. Longe dos refletores, se mostra irônica e extrovertida (vai pelo inverso de Marisa Monte). Nela predomina o cálculo. Sua pronúncia provém de um. Alonga as vogais para se fazer entender, como se pusesse legenda no português lisboeta. Constrói uma nova língua poética, um português incorpóreo e salmodiado. Teresa Salgueiro sobreviverá ao Madredeus. O grupo tem alta qualidade. A cantora, porém, se submete ao gesso da concepção purista e estrita de Magalhães. Este prendeu a voz à malha instrumental, para fugir do canto acompanhado. Passados quase dez anos de carreira, a originalidade do Madredeus já é o gesso de Teresa. Texto Anterior: Parceria de Antonioni e Wenders naufraga Próximo Texto: Cinema stalinista é baú que se abre Índice |
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