São Paulo, sábado, 9 de setembro de 1995
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Coleção traz inéditas de Glenn Gould

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O pianista canadense Glenn Gould foi um dos primeiros artistas a ter se defrontado com o problema da realidade virtual.
Morto aos 50 anos em Toronto, em 4 de outubro de 1982, de congestão cerebral, ele hoje goza a vida eterna das reproduções fonográficas. Driblou a morte pela técnica.
Pagou, para tanto, um preço alto. Gould trocou o palco pelo estúdio, o público de concerto pelo ouvinte de disco. Perpetrou uma das mudanças mais radicais na recepção musical. A partir dele, a interpretação reproduzível passa a ter o mesmo valor que a performance em carne e osso.
Vivos virtuais como Gould se distinguem dos finados comuns porque continuam fazendo aniversário. Este ano ele comemora 40 anos de gravações.
A quase totalidade delas será editada no Brasil até o final do ano que vem. Saem nesta segunda-feira os dez primeiros CDs da "Glenn Gould Edition", coleção de 40 volumes que enfeixa os 55 álbuns oficiais produzidos em 27 anos de carreira e dezenas de registros inéditos. Esses últimos foram comprados pela gravadora Sony da Canadian Broadcasting Corporation, rádio e TV oficiais canadenses onde Gould iniciou suas sessões, em abril de 1955.
Os primeiros volumes trazem as invenções e os concertos de Bach (com a Sinfônica da Columbia e regência de Leonard Bernstein), as transcrições para piano das sinfonias de Beethoven por Liszt, peças de Grieg, Sibelius e Hindemith.
Com suas luvas, costas encurvadas, o banco baixo e os olhos quase fincados no teclado do Steinway CD 318 -adaptado para soar profundo e veloz como um Chickering (piano norte-americano de 1895)-, Gould virou um zumbi em potência. Ainda é capaz de produzir espantos, aumentar vendagens e inspirar obras de ficção.
Os gemidos que soltava no meio de uma fuga parecem mais eloquentes do que nunca, uma profecia estética. Gould desmontou o repertório erudito para encontrar o motor perdido da interpretação.
A "Glenn Gould Edition" traz essas aventuras remasterizadas. Lançada nos EUA em setembro de 1992, por ocasião do sexagésimo aniversário do músico, chega atrasada ao país, mas com a virtude do preço menor e a boa qualidade do produto nacional.
A leitura insolente, cheia de tempos difusos, figura no oitavo volume. Gould não quer se fundir numa obra de câmara. Salienta dinâmicas, aparece todo tempo.
O volume 9 oferece um adendo ao famoso disco de "Consort of Musicke", lançado em 1968, com obras dos mestres tudorianos Orlando Gibbons (1583-1625) e William Byrd (1543-1623): uma "Fantasia em Ré", do holandês Jan Sweelinck (1562-1621), gravada em 1964.
Gould tinha em Gibbons seu autor favorito por anunciar o contraponto de Bach e marcar o final de uma era. Nessas peças, ele tentou libertar o piano de sua essência e tornar o som mais refinado.
Em Sweelinck, o pianista já usava os métodos heterodoxos de se rebaixar (aparentemente) diante do piano e clarificar as formas. Naquele ano, Gould assinou o atestado de óbito do recital. Causa mortis: "Era uma arena sangrenta, incompatível com o artista contemporâneo."
Dedicou-se nos últimos 18 anos de sua vida a lutar com os músicos do passado, longe das platéias, enclausurado em estúdios. Fez todo Mozart sem gostar dele. Em 1970, registrou para a CBC, em Toronto, a sonata "Hammerklavier", de Beethoven, sem deixar de tachá-la de "horrendamente difícil".
Depois da execução, concluiu que não havia conseguido decifrar os enigmas da obra e, por isso, não se sentia bem em exibi-la em público. "Não vou me preocupar com esse quebra-cabeça até 2027", brincou, já antevendo a sobrevida estética.
Pudor desmedido ou pretensão do artista, a versão está no volume 10 e mostra uma leitura que antes amplia os enigmas da "Hammerklavier". Soa lenta e orquestral; flui como um prelúdio wagneriano ou um poema ultra-romântico.
"Beethoven me irrita porque marca encontros com o destino em cada compasso", costumava dizer. Glenn Gould faz o mesmo em cada gravação.

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