São Paulo, sábado, 9 de setembro de 1995
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Vieira retoma teatro do mundo em 'Sermão'

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Ariano Suassuna, em Pernambuco, criou um espetáculo, um sarau, como chama, com o qual apresenta aos jovens estudantes a cultura popular do Nordeste. Leva rabequeiros, leva repentistas, pintura, arte. E leva o padre Vieira.
Um dos momentos de maior envolvimento, de maior reação do público adolescente, o que surpreendeu o próprio autor e secretário de Cultura, é a sua interpretação de um sermão do padre jesuíta, escrito há mais de três séculos.
Agora, também em São Paulo, é no teatro que o padre Vieira vê um dos seus sermões recuperar vida e comover. É o "Sermão da Quarta-feira de Cinza", em cartaz no Centro Cultural São Paulo, vindo de longa temporada no Rio.
O ator Pedro Paulo Rangel interpreta o padre Vieira com o envolvimento de quem enfrentasse as mesmas atribulações de vida.
O "Sermão da Quarta-feira de Cinza", primeiro de três com a mesma designação, surgiu não muito depois dos quase três anos de prisão de Vieira pelo Santo Ofício, quando o padre estava em Roma, longe da política do reino.
Ou ainda, quando o padre já estava entregue quase que exclusivamente aos elogios do público aristocrático de Roma, ao crescente "reconhecimento de seu gênio como pregador", como escreve Alcir Pécora em "A Arte de Morrer", editado em 94 com os três sermões de Cinza e que foi, parece, a inspiração para a montagem.
É com Alcir Pécora e também com João Adolfo Hansen, os dois com estudos sobre o período, um professor da Unicamp, o outro da Universidade de São Paulo, que começa uma imensa revisão da obra do padre Vieira e de toda a literatura do século 16, no Brasil.
Uma revisão que é mais ampla, mas que importa em particular, ao teatro, naquilo que está expresso claramente, agora, com o espetáculo de Pedro Paulo Rangel e o sarau de Ariano Suassuna.
O sermão é teatro. Ou, nas palavras do próprio Antonio Vieira, na obra maior que é o "Sermão da Sexagésima", talvez a mais original, a mais autêntica arte poética já escrita por um brasileiro:
"O púlpito é teatro."
Sempre agressivo, o padre compara os oradores -e ele próprio-, a Plauto, a Terêncio, a Sêneca, mas menos "verdadeiros". Diz, "uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito."
Deixando de lado a violenta autocrítica de Vieira, atento aos desvios da vaidade, importa mais agora reconhecer que os seus sermões eram comédia, eram teatro.
O "Sermão da Quarta-feira de Cinza", com Pedro Paulo Rangel, é teatro. É apenas o sermão, sem o ritual que o acompanhava, tantos séculos atrás, mas ainda assim é envolvente, tem ação.
É no mais das vezes uma sincera comédia. Na encenação de Moacir Chaves, é a comédia a face sublinhada, com o recurso aos instrumentos mais farsescos, como programas de auditório.
A opção do espetáculo pelo humor é consciente, como evidencia uma composição cênica, logo à entrada da sala de teatro: um manto cobre máscaras de Carnaval -o mesmo que, na Quaresma, como ainda acontece em igrejas pelo interior, cobre imagens de santos.
Para o espetáculo de Pedro Paulo Rangel e Moacir Chaves , o que há sob o manto de Vieira é o desfile na Sapucaí. Isso, não apenas na purificação depois do Carnaval, mas da afirmação de que o Carnaval está presente, também nos próprios santos, no próprio Vieira.
Mas não falta, é claro, a face pastoral do sermão. E mais, "é a própria vertigem gerada pelo discurso que assinala ao ouvinte a urgência (de) romper a cadeia das más eleições que o arrastam, vivo, para a condenação eterna".
A vertigem gerada pelo discurso é aquela do próprio discurso, que está desenhada com perfeição na atuação de Rangel. E que se resume, com a frieza de uma ameaça, nos quatro "pontos de consideração" deixados pelo sermão ao final, repetidos, ainda mais friamente, para que "fique na memória":
"Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva?"

Peça: Sermão de Quarta-Feira de Cinza
Autor: Padre Antonio Vieira
Elenco: Pedro Paulo Rangel
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, tel. 011/277-3611)
Quando: De quinta a sábado, às 21h, domingo, às 20h30
Preço: R$ 8

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