São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Faroeste marcou o início da TV a cabo no Brasil

ELVIRA LOBATO
DA REPORTAGEM LOCAL

O início da TV a cabo no Brasil daria um filme de aventuras. Amadores e oportunistas, liderados por argentinos não menos aventureiros, instalaram redes de cabos no interior de São Paulo, em uma época em que não havia legislação a respeito.
A primeira TV a cabo, com programação estrangeira captada de satélite, foi inaugurada em 1987 em Presidente Prudente (SP) pelo argentino Raul Melo. Em 1988, foram inauguradas as de Santo Anastácio e Franca, em São Paulo, e a de Campo Grande (MS).
Por ser estrangeiro, Raul Melo, 54, registrou a empresa em nome da mulher, Neuza Simões, presa duas vezes pela Polícia Federal.
Para ludibriar os fiscais do antigo Dentel (Departamento Nacional de Telecomunicações) e a polícia, o trabalho era feito de madrugada.
Em 1988, com a publicação da portaria 143, foi autorizada a instalação de antenas parabólicas coletivas e a redistribuição de sinais para as casas, por meio de cabos.
A portaria, segundo Melo, dizia que a programação só poderia ser retransmitida com autorização expressa das emissoras de TV. "As grandes emissoras fizeram um pacto para não dar autorização. A TV Educativa do Rio de Janeiro foi a primeira a romper o bloqueio", diz ele.
Até o final do ano passado, não existia, formalmente, a TV a cabo no Brasil, mas um serviço chamado DisTV (Distribuição de Sinais de TV) -criado pela portaria 250, de novembro de 89-, que, na prática, era a TV a cabo.
Raul Melo diz ter sido o autor do texto da portaria 250, embora o então secretário-executivo do Ministério das Comunicações, Rômulo Villar Furtado, o conteste.
A portaria 250 saiu cheia de furos. Não fazia referência à participação do capital estrangeiro e não previa punições para quem infringisse as normas.
Seu maior furo foi ter deixado livre a instalação de DisTVs em comunidades fechadas. Quem desejasse prestar o serviço poderia fazê-lo, sem ter de consultar o ministério.
A definição de comunidade fechada era muito ampla: condomínios verticais e horizontais, prédios, centros comerciais, escolas, hospitais e "assemelhados".
Ao pé da letra, todas as edificações de cidade poderiam ser consideradas comunidades fechadas, o que, agora, está provocando um conflito entre os que possuem a concessão e os que não a têm.
A portaria 250 foi assinada pelo ex-ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães no final do governo Sarney e, com base nela, outorgadas 101 concessões de DisTV.
Segundo a portaria, DisTV é a distribuição de sinais de TV por meios físicos. Mas o que vem a ser meio físico? O ar é um meio físico, mas as transmissões pelo ar (por sistema de microondas) não foram consideradas DisTV. A portaria só se referia, na realidade, às distribuições por cabos, fossem eles de fibra ótica ou cobre.
"DisTV foi um eufemismo encontrado para não chamar a atenção de Roberto Marinho, que tinha verdadeiro pânico de que a TV a cabo roubasse audiência da Globo", diz Raul Melo. E acrescenta: "O artifício deu certo, porque a portaria saiu sem que a Globo percebesse que estava sendo criada a TV a cabo no país".
Há fatos que confirmam a versão de Raul Melo. No final dos anos 80 e início dos anos 90, a Globo apostava que o futuro da TV por assinatura estava na transmissão direta por satélite -DTH (Direct to Home), que significa diretamente do satélite para casa- e criou a Globosat.
Na mesma época, o grupo Abril, principal concorrente da Globo na TV por assinatura, apostou no sistema de transmissão por microondas e criou a TVA.
As 101 concessões de DisTV foram dadas a amadores, sem capital para atender ao mercado, que, pelas projeções atuais, tem um potencial de 6 milhões de usuários, ou US$ 2,9 bilhões em faturamento só com a venda de assinatura e pagamento de mensalidades.
Os grandes grupos, com exceção da RBS (Rede Brasil Sul), da família Sirotsky, só se interessaram pelo mercado a partir de 1991, quando começaram a comprar as concessões dos pequenos.
A RBS percebeu, desde o início, que a TV a cabo poderia roubar a audiência das TVs convencionais e foi o único, dos grandes grupos, a solicitar concessões de DisTV. A RBS, no entanto, só começou a investir na instalação de cabos a partir de 92.
Em abril de 91, o grupo RBS obteve 13 concessões de DisTV para o Rio Grande do Sul.
As concessões de DisTV eram tão desprezadas, na época, que houve apenas dois pedidos para a cidade do Rio de Janeiro e nenhum para capitais do porte de Salvador, Manaus ou Vitória.
Hoje, o mercado de TV a cabo é dominado por dois grupos: de um lado, o bloco formado pelas Organizações Globo, RBS e Multicanal, que atuam em sociedade e controlam 80% das operações.
A TV a cabo já tem cerca de 600 mil assinantes, e o mercado cresce 10% ao mês. Um estudo da HBO, emissora de TV a cabo americana, diz que o Brasil tem potencial de mercado superior ao do resto da América Latina e pode chegar a 7 milhões de assinantes em cinco anos.
Luiz Claudio de Souza, vice-presidente da Multicanal, diz que a empresa entrou no mercado em dezembro de 91, quando percebeu sua importância.
Antônio Dias Leite Netto, principal acionista da Multicanal, descobriu o mercado da TV a cabo quando, em 91, se associou a um grupo de argentinos e americanos para disputar concorrências de telefonia celular no Brasil.
As concorrências foram impugnadas pela Justiça, mas Dias Leite se entusiasmou pelo projeto de TV a cabo, que prolifera há mais de 20 anos na Argentina, onde se desenvolveu de forma diferente. Lá, existem mais de 2.000 operadores, enquanto, no Brasil, o mercado foi rapidamente concentrado.
A Multicanal entrou no mercado comprando a maior parte do capital da RPC Televisão S/A, hoje Net Rio. Em 1992, Dias Leite vendeu as ações para a Globo e começou a comprar empresas em São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Goiás e Rio Grande do Sul.
Os grandes grupos chegaram quando o mercado da TV a cabo vivia sua fase de faroeste. Algumas empresas, hoje em poder da Multicanal, foram negociadas por cabeças de gado.
Atualmente, segundo levantamento feito pela Folha, 42 das 70 empresas de TV a cabo em funcionamento são controladas pelo grupo Globo/RBS/Multicanal, enquanto o grupo Abril detém 11 concessões.
No final do ano passado, após mais de três anos de discussão, o Congresso Nacional aprovou a lei da TV a cabo, encerrando a era do faroeste. As concessões de DisTV viraram concessões de TV a cabo.

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