São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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O poeta em três tempos

DUDA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A adesão mais ou menos estrita a uma poética existente costuma ser a primeira máscara de identidade de um poeta estreante. É no interior dessa orientação que seu talento se exerce e deve ser procurado; os dois primeiros livros de Régis Bonvicino não fogem a essa regra geral, mas trazem também a exceção constituída por seu talento diante da regra.
"Bicho Papel" (1975) e "Régis Hotel" (1978) compartilham certos traços comuns, movem-se dentro de um repertório marcado pela experimentação com a linguagem, pelo remanejamento irônico de clichês de comunicação e por uma poética da visualidade (desde o aproveitamento pop dos quadrinhos aos gestos gráficos e à estruturação visual do poema, com um certo influxo do poema concreto).
Assim é que, entre os poemas que mais se destacam no primeiro livro, estão "eu queria", que não se inclui neste repertório geral (a exceção dentro da exceção) e "metaforagir-se" (a exceção dentro da regra), onde a deformação de vocábulos que expressam figuras de linguagem se une à referência a situações reais, provocando uma espécie de paródia do significado, que parece ser o único meio de expressar esses próprios significados.
Já em "Régis Hotel", o repertório se amplia, com a presença marcante de inflexões de prosa e do registro coloquial nos poemas. Ao mesmo tempo, a qualidade da poesia se afirma, quer na gesticulação gráfica de "oO", quer em "poema". Em "Nhê", outro poema que se destaca, pode-se notar a fusão entre o tratamento inovador da linguagem, a dimensão da prosa e da fala. Há ainda neste livro um momento importante em que o poeta revela consciência do seu processo de criação e formação. Assim é que o poema sem título, que inverte o famoso "no meio do caminho tinha uma pedra", adquire um sentido emblemático em relação a própria situação artística do poeta.
"Sósia da Cópia" (1983) foi recebido acertadamente como a cristalização do talento do poeta. Vale a pena observar, no entanto, que todos os elementos de composição já apontados continuam presentes neste livro, incluindo-se aí uma poética da visualidade de matriz pop (o conjunto de anúncios, camisetas, a inscrição do grafite urbano, excluídos da presente antologia). Esta marca de visualidade irá se transferir para um conjunto de poemas breves e se refinar em extrema concentração lírica ("a cor não faz coro", "a primavera se imagina", "a passo de tartaruga", "tâmaras na boca", "furta cor").
A desordem e o impasse urbanos, já flagrados no livro anterior, são captados numa fórmula de precisão fulminante: "Não há saídas/ só ruas viadutos e avenidas". Mas o núcleo do seu livro (que remete ao seu título) está composto pelo ciclo de poemas "vida paixão e "praga de rb", como já foi observado por Sebastião Uchoa Leite. Aqui surge uma trama de relações bastante cerrada, cuja arquitetura vale a pena decifrar.
O trecho inicial mostra o poeta diante de seu trabalho; o segundo traz a exposição dolorosa de um momento biográfico, recortado com concisão brutal. A esta justaposição do "eu poético" ao "eu empírico", segue-se uma outra justaposição: os dois trechos seguintes são formados por séries enumerativas que se contrapõem, apresentando de forma objetivada uma cisão íntima. Depois, "mini-litania da lua cheia" põe de novo em cena o poeta, desta vez sob o signo de Jules Laforgue (lunes en détresse); a função deste trecho, no sentido narrativo e dramático, é preparar e justificar a litania final em que o poeta acusa a si mesmo de "epígono", "inocente útil", "caixinha de ecos".
Os últimos versos citam Fernando Pessoa traduzido para o espanhol; o poeta retorna à "cena do crime", numa espécie de clímax irônico, reforçando assim sua elaborada peça de auto-acusação. Mas é justamente esse confronto direto e sem apelação com uma situação de emparedamento engendrada pelos poetas "copiados" que torna possível sua própria afirmação singular como criador. Nesse sentido, o poema "últimas palavras" (congregando Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa) funciona como uma espécie de epílogo.
Este mesmo processo se reitera com a ilusão de um poema de Wallace Stevens, ao lado de sua tradução, introduzindo e preparando dois outros poemas de RB: "in vino veritas" e "o poeta". Tudo isto concorre para configurar não só uma estrutura bem tecida, como também uma poética bem constituída por um procedimento central claramente definido. Estrutura, procedimento central e poética que se prolongam em "Más Companhias" (1987): basta ler os poemas "RB resolve ser poeta, "más companhias", "o poeta", "não pode", "balada". O âmbito desse posfácio, no entanto, se limita aos livros contidos nesse "Primeiro Tempo" e que contribuíram para fazer de Régis Bonvicino um dos autores mais importantes da poesia brasileira atual.

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