São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Amazônia era mar há 10 milhões de anos

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se existissem ambientalistas 10 milhões de anos atrás, eles não teriam uma grande floresta amazônica para defender. No lugar hoje ocupado pela maior floresta tropical da Terra havia água.
Mas essa água foi fundamental para a evolução proporcionar depois para a região a maior diversidade de espécies de plantas e animais do planeta Terra -a "biodiversidade" que está na boca de todos os ambientalistas hoje.
Alguns anos atrás pesquisadores sugeriram que ali existira um imenso "lago amazônico", em um artigo na revista "Acta Amazonica, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Agora, outros pesquisadores afirmam que sua água devia ser salgada: onde hoje está o Amazonas, o maior rio de água doce do planeta, e seus afluentes, corria um braço do oceano Atlântico.
E mais ainda: esse mar amazônico poderia até cobrir boa parte da América do Sul, com uma entrada -um "portal"- aberta para o mar do Caribe e outra bem mais ao sul, na bacia do rio Paraná.
O mais novo estudo sobre o tema foi publicado há algumas semanas na revista científica americana "Science", feito por pesquisadores finlandeses em cooperação com brasileiros -Matti Rãsãnen e Ari Linna, da Universidade de Turku, e José C. R. Santos e Francisco Negri, ambos então na Universidade Federal do Acre.
Os cientistas não têm mais dúvidas de que a história da região amazônica é complexa e, principalmente, dinâmica. Em momentos mais recentes, no período conhecido pela ciência como quaternário (de 2,5 milhões de anos atrás até hoje), as eras glaciais fizeram a área de floresta encolher e ser tomada por vegetação de tipo savana (como o cerrado brasileiro).
A idéia de um mar amazônico é antiga. Já em 1927 o pesquisador Hermann von Ihering havia sugerido que existira uma ligação Caribe-Atlântico Sul, com base na semelhança entre foraminíferos (um tipo de protozoário, animal unicelular) do Rio da Prata (Argentina) e do Atlântico Norte.
Mas o artigo dos finlandeses e brasileiros "é o primeiro a relacionar evidência substancial colocando este mar interior em um local e momento testáveis", escreveu o pesquisador S. David Webb, da Universidade da Flórida (EUA), comentando o novo trabalho.
A palavra "testáveis" é uma chave dessa declaração. Um dos pré-requisitos para algo ser chamado de "científico" é a possibilidade de ser posto à prova. Um outro cientista pode pegar os mesmos dados e ir além, testando hipóteses e checando resultados com novos experimentos. Uma afirmação que não tem como ser provada ou refutada não é científica.
(É por isso que é considerado "científico" achar que os dinossauros teriam sido extintos depois que um cometa ou supermeteoro atingiu a Terra -existem os meios de tentar descobrir evidências do impacto e de seu efeito. Já a idéia de que dinossauros teriam sido extintos porque o calor torrou seus pênis é impossível de provar por não haver, pelo menos até agora, um método de demonstrar o que aconteceu. O mesmo vale para a existência de anjos "cabalísticos", para a circunstância de suas asas serem de baquelita ou de neoprene ou de teflon.)
Testar uma teoria geológica significa olhar para o chão. A equipe tem duas evidências básicas para provar sua tese: as marcas nas rochas, lama e sedimentos nas margens de rios, e mesmo em terra firme, e fósseis de animais marinhos, como dentes de tubarão.
Quem viajar na estação seca pelos rios Juruá e Purus, na região que os geólogos chamam de formação Solimões, poderá ver nas rochas das margens marcas de sedimentação horizontais, um acúmulo de estrias que podem ser interpretados como as impressões digitais deixadas pelo "lago", ou pelo "mar", amazônicos.
Rãsãnen e colegas acreditam que as marcas são o efeito da ação de marés do "mar". Segundo os pesquisadores, algumas das rochas são "quase idênticas em dimensões e estruturas" a outras conhecidas na América do Norte que já se identificaram como pertencentes a estuários.
Nem todos cientistas aceitam essa tese. De modo geral, esse tipo de depósito de sedimento no Acre tem sido interpretado ou como prova de um grande lago, ou como resultado de inundações dos rios.
Há mesmo a hipótese de que os sedimentos tenham vindo de um repentino degelo e esvaziamento do lago Titicaca, na Bolívia, em um momento mais glacial da história da América do Sul.
Um dos problemas de saber de fato o que as rochas gravaram é a dificuldade de acesso à região. As margens dos rios durante a estação seca são uma opção de pesquisa.
Ironicamente, a tão criticada (por ambientalistas) rodovia Transamazônica é outra porta de acesso que a equipe usou até as formações geológicas de seu interesse.
A datação do mar ainda é imprecisa. Ela ainda depende de estimativas relacionadas a animais terrestres em regiões próximas ao mar, nas formações geológicas conhecidas como Solimões e Pebas.
Essa imprecisão faz com que o mar Amazonas possa ser datado, em vez dos 10 milhões de anos atrás sugeridos pelos pesquisadores, em até mesmo 12 milhões de anos passados.
Diferenças como essas, de "meros" 2 milhões de anos, podem significar a presença de mares mais ou menos elevados, de maior ou menor temperatura, de mais ou menos florestas.
O período em estudo é conhecido pelos cientistas como mioceno, que durou de 26 milhões a 7 milhões de anos atrás e foi caracterizado pela presença de grama na vegetação e de animais interessados em comê-la. Nesse período também surgiram ancestrais longínquos dos seres humanos, protótipos de macacos que habitavam provavelmente a África e Eurásia.
Seja qual for o tamanho, ou a idade, desse mar, não há dúvida do que ele ajudou a criar -diversidade de formas vivas.
Uma das provas da existência desse oceano interior são os dentes de tubarão encontráveis pela região. Felizmente para os caboclos, essas espécies desapareceram; mas existem outras de caráter nitidamente oceânico que persistem na bacia amazônica, os botos e os peixe-bois.
Por que esses golfinhos estão no rio e não no mar? A explicação razoável é que ficaram "presos" no interior do continente depois que o mar passou a ser um "simples" rio -o maior do planeta.
Isso explica por que o Amazonas tem uma proporção maior de espécies derivadas de ambientes marítimos que outros grandes rios tropicais. E a geografia do mar amazônico explica também por que a biodiversidade teve uma boa chance de se desenvolver na região.
O mar amazônico dividiu a região em pedaços, basicamente três grandes deles. Cada um serviu como uma ilha evolutiva para espécies terrestres, separada dos outros trechos pelas águas. Cada um se tornou um laboratório de dimensões razoáveis para a seleção natural darwiniana, a competição pela sobrevivência que é o motor da evolução.
Os ambientes abertos ao longo das costas desse mar também ajudaram as migrações de animais do norte para o sul das Américas, de modo análogo aos mais conhecidos "corredores" de savanas que ajudam a explicar a interação das faunas ao longo da história.
Dizer que alguns quilômetros quadrados da Amazônia têm mais espécies de formigas que as ilhas britânicas está se transformando em um chavão. Mas isso aconteceu em parte porque, depois que as águas baixaram, criou-se um único e enorme ambiente de floresta tropical úmida, repleto de plantas, insetos, aves, répteis, peixes e mamíferos, muitas vezes únicos no mundo.

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