São Paulo, domingo, 10 de setembro de 1995
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Nós que nos amávamos tanto

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - O cheiro é de terra, de túmulo, de tempo. A capela dos papas, nas catacumbas de São Calixto, em Roma, ainda está intacta: basta descer alguns metros do chão da cidade e o passado retorna, úmido e sombrio. Em capelas assim os primeiros papas oravam e governavam a igreja nascente.
Lá em cima, os soldados de Nero, Domiciano, Trajano, Calígula e Décio caçavam os cristãos: valia tudo contra eles. Na pressa de se esconderem, cavavam com as unhas os labirintos debaixo do solo, que -segundo a frase de Tertuliano- estava sendo regado de sangue, sangue que era semente de novos cristãos.
Hoje os papas rezam e governam a igreja de um palácio com muitos aposentos e capelas. Suas paredes não estão revestidas de limo e túmulos, mas de afrescos de Michelangelo, Rafael, Giotto e Fra Angelico. Dispõem de várias capelas para rezar, entre as quais, a Paulina e a Sistina. Em cerimônias solenes, usam a maior igreja do mundo, toda revestida de mármore e bronze dourado, um museu em si mesma.
Muita coisa aconteceu entre a úmida capela das catacumbas e a colossal basílica da Renascença. Para resumir: no ano 325 de nossa era, um sucessor de Nero e Calígula, o imperador Constantino, converteu-se ao cristianismo depois de uma batalha em que viu, no céu, uma cruz com a mensagem que todos conhecem: "Com esse sinal vencerás". Em latim, que era o inglês da época.
Não havia Internet naquele tempo, nem outdoors, nem realidades virtuais, Constantino foi em frente, ganhou a batalha e mandou construir uma basílica no local onde funcionara o Circo de Nero. Não se tratava de um ancestral do Barnum, do Garcia ou do Orlando Orfei. Circo, na época, era o local onde feras comiam cristãos e depois eram mortas por gladiadores, que na prorrogação do tempo regulamentar mutuamente se matavam.
Tanto o circo anterior como a basílica posterior fizeram e fazem sucesso. O que não colou, nem teve sucesso, foi aquele período em que os cristãos se reuniam num buraco cavado às pressas, úmido e sombrio. E eram conhecidos porque se amavam uns aos outros.

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