São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 1995
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Homenagem do vício à virtude

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

A Folha de S.Paulo publicou ontem alguns trechos da entrevista do presidente Fernando Henrique Cardoso a uma das principais revistas alemãs, "Der Spiegel".
Perguntado se continua a se considerar um esquerdista, Fernando Henrique respondeu que "justiça social, igualdade e liberdade ainda são temas progressistas; nesse sentido, eu me entendo ainda como esquerdista". Acrescentou que a desigualdade social é o maior problema do Brasil e que a estabilização constitui o primeiro passo para um grande projeto de distribuição de renda.
Belas palavras. Nobres sentimentos. Vejamos, porém, o que ocorre na prática.
O governo federal encaminhou recentemente ao Congresso a sua proposta de reforma tributária. Coerentemente com a autodefinição ideológica do presidente da República, o governo explicou que um dos "objetivos fundamentais" da reforma seria "permitir uma distribuição social mais justa da carga tributária" (segundo a exposição de motivos da proposta de emenda constitucional).
É natural que este constitua um objetivo fundamental da reforma. Como se sabe, a renda é escandalosamente mal distribuída no Brasil e o instrumento tributário é um dos mecanismos de que dispõe o governo para tentar atenuar as desigualdades sociais. Ademais, a carga tributária é muito mal distribuída no Brasil e tende a onerar mais pesadamente os setores de menor nível de renda.
Mas o que faz, concretamente, a proposta do governo para promover a distribuição da renda?
Examinando-a com boa vontade, lupa e lente de aumento, encontramos os seguintes pontos principais:
a) no que diz respeito ao IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), a emenda proposta retiraria suposta ambiguidade do atual texto constitucional e evitaria ações judiciais contra a sua cobrança progressiva (isto é, contra a aplicação de alíquotas progressivamente maiores em função do valor dos imóveis);
b) a seletividade do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), em função da essencialidade dos bens e serviços, passaria a ser obrigatória (hoje é optativa);
c) a estadualização do ITR (Imposto Territorial Rural) permitiria, segundo o governo, tributar mais pesadamente as terras improdutivas (hoje este imposto é da União e proporciona arrecadação ridiculamente baixa);
d) a flexibilização do sigilo bancário e o fechamento de algumas brechas do ICMS facilitariam o combate à sonegação de tributos; como as oportunidades de evasão são maiores para os segmentos de renda mais elevada, essas medidas tenderiam a produzir melhor distribuição da carga tributária efetiva.
Várias dessas medidas são positivas. É o caso da flexibilização do sigilo bancário, que já comentei em artigos recentes. Também são positivas a determinação de que o IPTU "poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal" e a seletividade obrigatória das alíquotas do novo ICMS.
Outros pontos são discutíveis. A proposta de transferir o ITR para os Estados, por exemplo. Nesse caso, o que move o governo federal não parece ser a preocupação com a justiça fiscal, mas sim a de oferecer aos Estados uma compensação para as perdas de receitas e competência tributárias que lhe seriam impostas por outros aspectos do projeto. Não se pode aceitar que um imposto da importância potencial do ITR seja tratado como simples moeda de troca na negociação com os Estados.
Seja como for, o ponto é que as medidas propostas até agora pelo governo têm pouco alcance em termos do objetivo, dito fundamental, de redistribuir de modo socialmente mais justo a carga tributária.
A flexibilização do sigilo bancário depende sobretudo de legislação infraconstitucional. Alguns dos aspectos da proposta do governo (seletividade obrigatória do ICMS e atuação conjunta das máquinas federal e estaduais, por exemplo) só vigorariam a partir de 1988, com a fusão do IPI e do ICMS. No caso do IPTU, vale notar que a atual redação do texto constitucional não tem impedido governos municipais de instituir sua progressividade; recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu ganho de causa à Prefeitura de São Paulo, considerando constitucional o IPTU progressivo proposto na gestão Erundina.
De qualquer forma, se o objetivo é tornar o sistema mais justo, por que não estabelecer a obrigatoriedade de que IPTU e demais impostos sobre a propriedade (ITR, imposto sobre heranças e doações, IPVA etc.) sejam aplicados de forma progressiva? Por que o governo nada faz para regulamentar o imposto sobre grandes fortunas, já previsto na Constituição?
Qualquer pessoa que examine o assunto com isenção não deixará de concluir que as propostas encaminhadas ao Congresso, mesmo que integralmente aprovadas, pouco contribuirão para alterar o caráter profundamente injusto do sistema tributário, até porque não é por meio de emendas constitucionais que se poderá resolver o problema.
As injustiças do sistema tributário brasileiro encontram-se sobretudo no campo da legislação infraconstitucional e da administração tributária, áreas nas quais a ação e as propostas do governo têm sido bastante limitadas.
A ênfase retórica na justiça fiscal como objetivo fundamental parece, pelo menos por enquanto, sobretudo uma manifestação de hipocrisia.
La Rochefoucauld dizia que a hipocrisia é uma homenagem do vício à virtude. Para alguns otimistas, quando o vício ainda se sente obrigado a homenagear a virtude, é porque nem tudo está perdido. Mais realista seria reconhecer que esse tipo de "homenagem" serve, no mais das vezes, para mistificar as questões e retardar o reconhecimento e a solução dos problemas sociais.

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