São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
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'Tenho de lutar nesta guerra estúpida'

RICARDO SETYON
FREE-LANCE PARA A FOLHA, DA BÓSNIA

Era mais ou menos 1h, de uma quinta-feira. No meio do nevoeiro aparece uma placa: "Karlovac". Perfurada de balas. Três teens saltaram assustados. Só abrem o sorriso ao verem a placa estrangeira.
Perguntamos se falavam inglês. "Claro!", respondeu o garoto, Davor, com uma camiseta de batida, cigarro na mão e descalço. "Vocês perderam alguma coisa por aqui, ou só gostam de viver perigosamente?", pergunta Davor.
O único hotel da cidade de Karlovac ficava perto. "Foi destruído pelas bombas, diz Davor. "Vocês dormem em casa!
A conversa foi toda embalada ao som de Raimundos e Ratos do Porão, que deram uma idéia do rock brasileiro aos jovens croatas.
Ao entrar na casa de Davor, ele oferece: "Vamos comer antes de dormir. Amanhã, tenho de voltar ao exército bem cedo. Acordamos às 5h45. Está bem para vocês?
O soldado teen nos envolveu com a sua história, enquanto cortava pão e um tipo de linguiça. "Eu mesmo fiz esta linguiça. Está deliciosa. Comam com esta pasta de raiz forte com maionese.
"Estou no exército há mais de dois anos. Minha juventude foi meio cortada para eu me tornar militar. Sou antiexércitos. De batalhas e lutas, nunca quis saber. E hoje faço parte das forças especiais. Tenho de combater, de lutar nesta estúpida guerra: os sérvios acabaram com a minha cidade e tornaram a nossa vida um pesadelo. A escola onde estudei está destruída. O escritório de minha mãe (uma arquiteta famosa) foi atingido por bombas e minha casa tem buracos de balas. Como posso ficar de fora?", pergunta.
"Antes eu era louco por rock, passeios e viagens internacionais. Trabalhava para um jamaicano que vendia pacotes turísticos na Europa. Mas a minha vida hoje é 90% exército, e 10% sonhos.
Como prometido, Davor nos acorda cedo. É um outro garoto. "Temos tempo para tomar um café e conversar, diz ele com uniforme militar, metralhadora a tiracolo e pistola na cintura.
"Isto não é filme de aventura. Aqui, você toma numa hora café e logo está enterrando um amigo que pisou numa mina. Somos chamados para fazer o trabalho sujo que outros não fazem. Por isso usamos este emblema no ombro que diz 'tropas especiais'. Não sei quando vou tirar este uniforme."
Mas ele não parece triste. "Estou feliz em conhecer brasileiros. É bom fazer amigos. Até no exército temos amigos estrangeiros."
São 6h45 e ele nos pede carona até o ponto de bloqueio rodoviário. Davor nos manda embora, "rápido, diz ele. Não deu nem tempo para um tchau.
(RSe)

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