São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
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Livro revela estranho mundo de Byrne

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Você já conhece o Talking Head David Byrne como compositor, showman, cineasta, videomaker, escritor e produtor musical.
Pois se prepare para descobrir que a cabeça falante também fotografa. Sim, a editora Chronicle Books, de São Francisco, estará lançando no início de outubro o livro "Strange Ritual" (U$ 24,95).
É uma seleção das fotos que ele vem fazendo há pelo menos uns dez anos, em suas andanças pelos quatro cantos do mundo. Junto com as fotos vão alguns pequenos textos, crônicas, poemas e aforismos. Um deles é concluído com a seguinte confissão: "Eu venero imagens sem sentido. É uma excelente definição para o livro todo.
Se você já achava que David Byrne tinha para o bizarro, espere só até ver essa coletânea.
Segundo ele próprio explica numa espécie de posfácio, desde que desenvolveu o hábito compulsivo de fotografar todos os lugares por onde passa, ele nunca imaginou que fosse um dia publicar os resultados desse vício. E tinha todas as melhores razões para pensar assim.
Mas quis o destino e a luz se fez verbo. Como desde o início eram gratuitas, simples tentativas de abater um desejo difuso, as fotos são de uma notável espontaneidade (exceto uma pequena série de estúdio) e revelam o imaginário de Byrne com uma profundidade e transparência maiores do que qualquer outro de seus trabalhos. Para além do olhar paranóico que você já conhece, as fotos permitem um mergulho na sua mente febril.
As imagens são de objetos e ambientes na sua mais plena condição casual. Barracas de feiras, vitrines, fachadas, interiores de fábricas e escritórios, detalhes de hotéis e aeroportos, prateleiras de supermercados, templos, grafitti, cartazes, móveis, calendários, luminárias, livros, estatuetas e segmentos tirados do corpo humano.
O fortuito tornado misterioso e o exótico feito familiar, pelo efeito de recorte da fotografia, o tratamento cromático da luz e o inusitado da eleição temática. Ninguém julgaria esses objetos e situações dignos de atenção artística, até que Byrne os processou ou foi possuído por eles. "É um caso de amor com objetos inanimados. O amor mais elevado é o mais estúpido. O sublime está no banal.
Não se trata de amor ao paradoxo, porém, nem de qualquer crença numa mística do acaso ou da gratuidade da arte. Há princípios nessa extravagância, assim como há regularidades nesse desfile aleatório das contingências.
Num mundo que se tornou saturado pelo bombardeio de imagens 24 horas por dia (porque são as mesmas imagens que voltam à noite nos nossos sonhos), uma das mais urgentes lutas políticas é aquela pelo resgate da dimensão numinosa da percepção visual.
A essa altura já ficou claro que, assim como pensamos através de palavras e conceitos, do mesmo modo nosso comportamento é definido pelos reflexos do nosso aparato perceptivo, sobretudo a visão. O que Byrne sugere é politizar a visão, fazendo dela não um meio passivo de consumo, mas uma fonte instável de projeção, investimento desejante e espanto.
"Quando algo nos faz sentir estranhos, nos faz sentir bem igualmente. Essas duas sensações estão de alguma forma ligadas. Estranho = Bom. É uma sensação física sentida no estômago que se liga aos centros de prazer no cérebro. A câmara ajuda essa sensação a acontecer. Ela se torna então uma máquina de prazer.
Daí o vício. Que arrisca de se tornar, ademais, contagioso. Mas é risco menor, já que é fácil resistir ao discreto charme da anomia. Esse impulso para restituir a carga erótica do mundo material, justo ali onde ela parece mais impossível de se manifestar, resíduos kitsch, disformes, esquálidos, populares, reles, Byrne considera um ato de "sacralização. O que explica o nome do livro, já que não é a obra em si, a foto, que conta, mas o gesto de buscar o frescor cristalino da coisa simples, o exercício de ver o mundo com os olhos de um alienígena recém-chegado.
Essa sensibilidade para encontrar o lirismo imanente nas coisas ignoradas está longe de ser regressiva ou evasiva. "O Paraíso está lá -diz Byrne-, onde não se procura mais o paraíso.

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