São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
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Platão e a maconha

JOEL RUFINO DOS SANTOS

"Maconha também é cultura!" Ouvi um sujeito berrar isso num botequim do centro do Rio. Aceitei a provocação e comecei a pensar no significado atual de cultura. Daí saltei para a utilidade do Ministério da Cultura a que pertenço.
No diálogo Teeteto, conta Platão que Tales de Mileto vinha pela rua refletindo sobre o significado dos astros quando caiu num buraco. Uma serva trácia, bela e galhofeira, caiu na gargalhada: "Aquele ali se preocupa tanto com o que se passa no céu que não tem olhos para ver o que tem diante do nariz e debaixo dos pés". Comentário de Platão: "À mesma gozação está sujeito todo aquele que se dedica à filosofia!".
É comum políticos e burocratas rirem da cultura e suas instituições. Fazem isso com benevolência, como a escrava de Tales. Os trabalhadores da cultura reagimos de duas maneiras: escondendo-nos ou tentando provar atabalhoadamente que a cultura serve para algo.
As duas maneiras são ineficazes, só aumentam as nossas dificuldades. Cultura é filosofia -no sentido indicado pela historinha de Platão. Ela não se avalia por critérios práticos imediatos, não é como o mercado de automóveis ou o mapeamento genético. Não é capital, nem técnica ou ciência.
A cultura (enquanto filosofia) só serve, ao contrário da ciência e da técnica, para pensar. Claro que há pensamento na ciência e na técnica, mas elas não se pensam, não se constituem seu próprio problema, como a cultura. Nenhuma empregada ri de chips ou de genomas. Essas atividades nunca cairão em buracos, pois não lidam com significados -são atividades cegas para a existência. O olho da ciência, já se disse, vê tudo, mas não vê a si mesmo.
Na atual conjuntura, certas idéias da classe burguesa se tornaram idéias de todos: desenvolvimento, competitividade, privatização, regulação pelo mercado, globalização. Não se discutem mais os fundamentos dessas idéias, salvo os holistas de carteirinha. No plano propriamente político reina uma unanimidade burra, a crença maciça de que desenvolvimento e modernidade são inexoráveis. É o que faz tão parecidos os discursos dos srs. Inocêncio Oliveira e José Genoino. Nos anos 60 havia, ao menos, a revolução para negar aquela inexorabilidade, mas ela lá se foi.
Ocorre que a palavra cultura herdou em boa parte os significados do termo revolução. "Maconha também é cultura!" Essas minhas considerações pareceriam risíveis à mulher trácia que debochou de Tales. Falarei então de dois buracos enormes que estão a nossa frente: as drogas e a reforma agrária.
A questão das drogas está afeta ao Ministério da Justiça e tem um tratamento técnico -político, criminal ou policial. No entanto, duas ou três perguntas simples remeteriam a questão para uma região anterior à da justiça: 1) que vazio existencial é preenchido pela droga?; 2) que é a jovialidade? (supondo, com tantos pensadores, que a droga é um desejo juvenil); 3) que é a jovialidade brasileira?
Ora, essa região anterior é a cultura. Um Ministério da Cultura serve para isso: tratar das questões no seu estágio anterior. Platão não conta, mas Tales sentiu orgulho de a escrava rir dele.
O Ministério da Cultura não pode abdicar de ser o organizador do debate nacional sobre drogas. Isso se queremos, de fato, pensar as drogas e não apenas caçar traficantes com ajuda do FBI, carreando rios de dinheiro para campanhas inúteis. Pensar a droga como cultura nacional foi, aliás, a proposta de Garcia Marquez ao governo colombiano anos atrás. Não foi ouvido.
O segundo buraco aberto a nossa frente é a reforma agrária. Na verdade, a ausência de reforma agrária.
Pouco antes de morrer, Florestan Fernandes pediu atenção para "um fator assustador: os deserdados da terra, que levantam a bandeira da reforma agrária e fazem um movimento denso e significativo". As iniciativas do Estado se parecem ao Tonel das Danaidas: quanto mais se fazem assentamentos, mais deserdados aparecem. Esse o "fator assustador": não sabemos, às vésperas do século 21, como completar a nação.
Pois, de fato, como advertiram viajantes estrangeiros do século passado, o Brasil permaneceria uma nação inconclusa enquanto o povo andasse divorciado do patrimônio territorial.
Não se trata de voltar aos dilemas teóricos dos 60 -burguesia mais povo X latifúndio-, mas de buscar em nossa maneira de estar no mundo a raiz dessa perversidade antiga e pesada que parece fadar ao fracasso tudo o que queremos e fazemos. Essa busca é competência do Ministério da Cultura, pois as suas razões se encontram na região anterior à das escolhas políticas e econômico-financeiras. Talvez resida no Ministério da Cultura a última chance de o Estado brasileiro resolver o problema dos sem-terra -eles já correram todas as instâncias e guichês, menos esse.
Sendo um pensador, o presidente da República terá atentado para um fato: os artigos 25, 215 e 216 da Constituição em vigor, combinados ao artigo 68 das Disposições Transitórias, dão ao Ministério da Cultura os instrumentos para fazer microrreformas agrárias pelo país.
Aqueles artigos mandam o Estado proteger os contextos culturais decorrentes de nossa origem africana, enquanto o 68 reza expressamente: "Às comunidades remanescentes de quilombos que estiverem ocupando suas terras é assegurada a propriedade definitiva, devendo a União emitir-lhes os títulos respectivos". Esse artigo é o complemento à Lei Áurea que os melhores abolicionistas pediam, com cem anos de atraso.
Quantas são as comunidades remanescentes de quilombos? Milhares, da Amazônia ao Rio Grande do Sul. A primeira tarefa é mapeá-las, em seguida demarcá-las, expedir os títulos e registrá-los em cartório. São tarefas da cultura, sobretudo porque o espírito da lei é garantir a terra como base física de contextos culturais diferenciados. Nessas comunidades rurais negras, por exemplo, a renda já nasce dividida.
Quilombo também é cultura.

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