São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Stendhal e o Eu inventado

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Foram lançadas recentemente duas biografias escritas por Stendhal. Sou fascinado pelo autor, não tanto pelas suas obras-primas, como "A Cartuxa de Parma" e "O Vermelho e o Negro". Para ficar num tempo e num lugar, prefiro Flaubert como romancista. Mas Stendhal foi um personagem curioso, fascinante, imprevisível.
Muito antes de Proust, ele deu uma guinada na literatura universal inventando o Eu. E como não se inventa uma coisa dessa impunemente, ele teria de radicalizar.
Nem pensava ainda em suas obras maiores e já se preocupava em escrever-se, inventar-se. Custou a chegar ao pseudônimo que lhe daria imortalidade. Antes de se fixar em "Stendhal", adotou durante algum tempo um esclarecedor "Mr. Myself". Seus primeiros livros foram pirateados, assinava com nome falso obras de outros, inclusive a sua ainda citada "A História da Pintura", que ele apenas traduziu do alemão e até o fim da vida a colocava entre seus trabalhos.
As duas biografias agora lançadas no Brasil, Napoleão e Rossini, também são suspeitas de plágio. Stendhal achava que tudo o que lia era seu: a partir do momento em que lesse os evangelhos ou a "Odisséia", tudo aquilo passaria a lhe pertencer. Era dele.
Já lembrei, em coluna passada, o encontro de Byron com Stendhal, em Paris. O romancista se apresentou como secretário particular de Napoleão durante as campanhas mais famosas do imperador. Byron acreditou e o tomou como autoridade no assunto. Citava-o toda vez que desejava falar de Napoleão. Na verdade, Stendhal só esteve com Napoleão uma única vez, levando-lhe uma correspondência circunstancial.
A genialidade com que inventou o Eu, independente de si próprio, é um dos maiores romances jamais escritos. Não importa que, de quebra, como subprodutos, ele tenha criado Julien Sorel e Fabricio del Monte.
Até para morrer Stendhal se inventou. Francês nascido em Grenoble, redigiu para si mesmo o famoso epitáfio: "Arrigo Beyle, milanese, Scrisse, Visse, Amo". À medida que o tempo passa, esse milanês vai se tornando cada vez mais verdadeiro.

Texto Anterior: Desafio mundial
Próximo Texto: A alegria da meninada é a rua
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.