São Paulo, quinta-feira, 21 de setembro de 1995
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5.300 anos

OTAVIO FRIAS FILHO

O homem do Tirol é o mais antigo ser humano encontrado intacto. Morto nos Alpes há 5.300 anos, seu corpo se conservou em gelo até ser descoberto por acaso em 1991. Como o presente se projeta sempre sobre o passado, enquanto é empurrado de costas para o futuro, uma vez livre do gelo o homem do Tirol foi soterrado pelas nossas fantasias retrospectivas.
Mulheres de todo o mundo manifestaram o desejo de serem fertilizadas pelo antepassado, mas ele era gay, logo se revelou. Seu colesterol aliás era alto e ele terá sido o primeiro refugiado político: as roupas sugerem que vivia num lugar de clima quente. Levava cogumelos que talvez fossem usados como antibióticos ou alucinógenos.
Ainda agora, para evidenciar a atualidade do homem do Tirol ou o arcaísmo da classe operária, divulgou-se que a múmia era um metalúrgico, o primeiro da profissão, que desponta assim como a segunda mais antiga do mundo. O homem do Tirol estava a um passo de virar agricultor, estabelecer um povoado, sair da pré-história.
A metalurgia se confunde, nesse contexto mitológico, com a própria história, que começa e termina com ela. Antes, fomos escravos dos instintos e das intempéries, junto com os animais; depois, seremos escravos das máquinas e de uma ordem social perfeitamente regulada, como uma natureza artificial.
Entre um momento e o outro houve o reino da liberdade, quando cada um lutava por seus próprios meios para viver e procriar, enfrentando obstáculos poderosos, mas comensuráveis -liberdade essa que começamos a perder com a revolução industrial e que se extingue agora com a informática, porque então a sociedade inteira se transforma em máquina.
É estranho que a filosofia se expresse por meio de bombas, em vez de ser alvo delas. Mas essa é, em linhas gerais, a opinião do Unabomber no rebarbativo artigo que o "Washington Post" se viu obrigado a imprimir, sob pena de precipitar a morte de inocentes e ao risco de insuflar, pelo exemplo, o terror.
A prosa pedante, afetadamente racional, do terrorista requenta um coquetel de idéias tiradas dos manuais de popularização: o progresso e a técnica corrompem (Rousseau); o homem só é livre na solidão (Emerson); nossa vontade de poder degenera em debilidade pelo solapamento do cristianismo e da democracia burguesa (Nietzsche).
Lendo o manifesto, somos tomados por um impulso sherlockiano: o Unabomber parece um técnico ou ex-militar que se ocupou às pressas das humanidades, a fim de encontrar nelas a confirmação de sua paranóia, um pouco como o Hitler que escreveu "Mein Kampf". Nas horas vagas, deve ter visto muita ficção científica.
Especula-se que tenha sido desempregado pelo sistema digital que tanto abomina. Ao falar de amor e sexo, ostenta uma naturalidade excessiva e de fato todo mundo acha que ele é um desses celibatários que às vezes tentam matar o presidente da República. Talvez seja um autor fracassado ou um aluno reprovado em filosofia.
Como o homem do Tirol, não sabemos quem ele é. Disponível para toda apropriação, ideólogo a posteriori do atentado de Oklahoma e de outros que ainda haverá, o Unabomber é o achado da arqueologia ideológica da nossa época, em que passado e futuro trocam de lugar e o revolucionário mais fervoroso é o passadista mais empedernido.

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