São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Pelé tenta fazer o mais histórico dos gols

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Afinal o ministro Pelé entra em campo para tentar interceptar um passe malicioso, cuja trajetória atravessa os nossos campos de futebol desde a implantação do profissionalismo, há quase meio século: aquele que prende o jogador pelo cordão umbilical ao clube, como um anacrônico remanescente dos tempos da escravidão. Trata-se de uma jogada de efeito, que ganhará espaços nobres na mídia, por certo. Mas de eficiência duvidosa.
Pelo menos para alguém que sucedeu a Pelé nos campos, como digno herdeiro da camisa 10 da seleção, e que o antecedeu no ministério. Refiro-me a Zico, ex-craque e ex-secretário de Esportes, que, ainda na quinta à noite, sentenciava: "A Lei do Passe só existe porque o jogador tem medo de ser livre".
Segundo Zico, o jogador teme ficar à deriva, sem clube nem salários, caso o passe, que é grilhão mas é também um protetor, seja extinto.
É mais ou menos o que acontecia com muitos escravos negros, tanto nos tempos da Guerra Civil americana quanto às vésperas da Lei Áurea, por aqui: prezavam mais a segurança e o alimento que seus senhores ofereciam do que a liberdade, que implicava em sair à luta no descampado de um mundo desconhecido. Quer dizer: no fundo, o que sustenta a Lei do Passe é o velho complexo de inferioridade, semente adubada com extremos pelo feudalismo, que, no Brasil, vestiu gravata, blazer italiano, trocou o tílburi por um carrão importado, mas que continua vivo, latejando na alma brasileira. Aquele sentimento de incapacidade de lutar no mercado aberto por seu lugar ao sol.
Resumindo, pois, Pelé terá de brigar em duas frentes para marcar o mais histórico de seus gols: convencer um Congresso repleto de parlamentares que, direta ou indiretamente, têm interesses pessoais e políticos para defender os clubes, grandes guardiães dessa infame legislação, a aprovar seu projeto e persuadir os beneficiados da precisão de sua jogada.
Não é pouco, nem mesmo para Pelé.
Ainda a propósito de Zico, uma cena para entrar na história: noite de quinta-feira, 20 de setembro de 1995, no salão de espera dos estúdios da TV Gazeta, São Paulo, Zico numa extremidade do sofá de couro; Juninho, na outra.
Juninho: "E aí, Zico, o que faço para deixar de perder tantos gols?".
Zico: "Primeiro, pare de falar nisso. Depois, tem é que treinar muito".
Juninho: "Treinar eu treino, mas como? Dá uma dica, vai".
Zico: "Antes de mais nada, treine chutar para o gol sem olhar. Depois, coloque um cone na entrada da área, como se fosse um zagueiro, e alguém fica metendo as bolas da esquerda para a direita e vice-versa para você entrar e chutar sempre cruzado, no canto oposto. No jogo, dois detalhes: sempre tente o drible na chamada perna boa do zagueiro. Se ele é destro, na direita; se canhoto, na esquerda, porque assim ele não tem tempo de recuperação. Outro: deu o corte no beque, chuta. Cortou, chutou. Chuta, cara".

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