São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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MAPA DE UM AMOR BRASILEIRO

MARILENE FELINTO
ENVIADA ESPECIAL AO RIO E A PETRÓPOLIS

Em fins de novembro de 1951, uma poeta americana, que tentava se recuperar de uma depressão, embarcava em Nova York no cargueiro Bowplate rumo à América do Sul. O plano inicial, de um cruzeiro de volta ao mundo, fora cancelado por lotação esgotada. A poeta era Elizabeth Bishop, uma das mais importantes da poesia americana contemporânea.
Seu destino, por mero acaso, seria o Brasil, onde viveria pelos 15 anos seguintes. Tinha então 40 anos e publicara um único livro, "North and South" (1946), mas já ganhara o reconhecimento de poetas como Marianne Moore e Robert Lowell.
No Rio de Janeiro, Bishop apaixonou-se por Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (Lota), que tinha 42 anos na época e era a ovelha negra de uma aristocrática e milionária família carioca. Amiga íntima do jornalista e político conservador Carlos Lacerda (1914- 1977), Lota foi, no governo dele na ex-Guanabara, encarregada de administrar a construção do aterro e do parque do Flamengo. Com ela, Elizabeth Bishop viveria o que chamou de "os 12 ou 13 anos mais felizes de minha vida". O relacionamento terminaria com o suicídio de Lota, em 1967.
A passagem de Bishop pelo Brasil seria uma espécie de mistura de feijão preto com amor e diamantes -alusão ao título "Brasil: Feijão Preto e Diamantes", que ela escolheu para dar ao volume sobre o país, encomendado pela Time-Life para a coleção de geografia "Life World Library". No Brasil, Bishop viveu entre o Rio, Petrópolis e Ouro Preto. Teve dificuldade para escrever o livro da Time-Life, por questões de estilo. O livro foi lançado em 1963, com outro título: "Brazil", simplesmente.
A casa onde Lota e Bishop viveram em Petrópolis, a fazenda Samambaia, fica no alto de uma colina, na rua Djanira, 322, em homenagem à pintora, que também morou na mesma rua. O estúdio que Lota construiu para Bishop nos fundos da propriedade permanece quase idêntico.
Antonio Palma, 56, antigo funcionário da casa, lembra à Folha: "Dona Elizabeth ficava aqui mesmo nesse escritório, desenhando o tempo todo. Ela gostava de desenhar. Às vezes ela botava aquela prancheta aqui fora e ficava pintando paisagem. Inclusivemente ela escrevia muito também, com a máquina". Sobre Lota, ele conta: "Era uma dona de muita disposição, parecia um homem, não tinha medo, chegava, conversava, só andava de calça, bota e jipe. Nunca vi ela de vestido nem uma vez".
A poesia de Bishop -pouco conhecida e mal traduzida no Brasil- bem como a geografia sentimental dessas duas mulheres (especialmente a vida de Lota, mais conhecida lá fora) saem um pouco das sombras com a publicação da coletânea de cartas de Elizabeth Bishop, "Uma Arte", pela Companhia das Letras, em novembro. Também está previsto para breve o lançamento pela editora Rocco de uma biografia romanceada sobre Lota, de autoria de Carmen Oliveira.
Em entrevista no Rio, Stella Pereira (na verdade, Stella Maria Ruy Barbosa Baptista Pereira, neta de Ruy Barbosa), 84, amiga de Lota desde a juventude, lembra-se com emoção da amiga: "Era uma aristocrata pela sensibilidade, amava a beleza e a arte, era fundamentalmente uma artista. Amava o povo acima de tudo. Queria servi-lo e, ao fazer o parque do Flamengo, pôde realizar a sua maior aspiração. Queria ver as crianças correndo, brincando, o povo jogando futebol, a alegria imperando na população menos favorecida. O aterro foi a sua razão de viver".
O Brasil foi para Elizabeth Bishop uma espécie de ilha de Robinson Crusoé, onde chegou naufragada por decepções amorosas. Conheceu bem o país, viajou pelo rio São Francisco e pelo Amazonas, onde manteve contato com índios do Xingu. Fez aqui amizades duradouras, entre as quais os poetas Vinicius de Morais e Manuel Bandeira. "Elizabeth tinha um olhar vivo e interessado a respeito das pessoas e das coisas", diz à Folha José Alberto Nemer, um de seus melhores amigos brasileiros, seu vizinho em Ouro Preto.
"Ela falava português com dificuldade, catando as palavras (...), mas era perfeitamente integrada, recebendo e guiando amigos estrangeiros e traduzindo poesia brasileira."
Com outro amigo brasileiro, Emanuel Brasil, 54, Bishop organizou e ajudou a traduzir para o inglês uma coletânea de poetas brasileiros do século 20. Em entrevista no Rio, Emanuel, que conheceu Bishop no ano da morte de Lota, conta como a poeta ainda falava com frequência na amante, anos depois: "Elizabeth falava muito sobre Lota, dizia que nunca tinha passado por sua cabeça terminar a vida sem Lota. Referia-se a ela sempre com muito carinho, e até mesmo aos objetos que tinham pertencido a Lota, como um jogo de jantar dinamarquês, se não me engano, que guardava em casa e tinha sido comprado por Lota para a casa delas".
As cartas de Elizabeth Bishop deixam claro que sua vida foi tão espetacular quanto sua poesia. Por um lado, teve a sorte de conviver com gente tão talentosa quanto ela, seus interlocutores intelectuais, entre os quais Mary McCarthy, Octavio Paz, Lowell e Moore. Por outro, saía de uma história familiar trágica para entrar nos arrebatamentos e intrigas do estranho mundo do homossexualismo feminino -especialmente numa época em que ser lésbica não era chique.
Mas há quem conteste a versão de que Elizabeth Bishop fosse lésbica. O poeta Lloyd Schwartz, amigo íntimo dela, diz na biografia "Remembering Elizabeth Bishop - An Oral Biography" (University of Massachusetts Press, 1994): "A vida sexual de Elizabeth foi (...) mais surpreendente e complicada do que a maioria das pessoas supõe. Na verdade, ela também era atraída por homens (...), mesmo fisicamente. Quando estive no Brasil em 1990, ouvi histórias sobre a amizade de Elizabeth com o famoso poeta Vinicius de Moraes. (...) Vinicius tinha fama de ser um mulherengo. Fontes seguras me contaram que Elizabeth e Vinicius ficavam bebendo até tarde na pensão Chico Rey, onde ambos se hospedavam (enquanto a casa dela estava sendo reformada em Ouro Preto), e depois passavam a noite juntos".
A poesia de Bishop, entretanto, paira soberana acima das tormentas e contradições de sua vida. Escreveu pouco, mas com perfeição. Demorava anos para terminar um poema. "Elizabeth nunca escreveu um único poema ruim", diz um de seus amigos, o poeta Mark Strand, em depoimento de 1988, a Jill Janows, no documentário em vídeo "Elizabeth Bishop - One Art".
Poesia de imagens complexas, elaboradas em linguagem paradoxalmente simples, é precisa e contida como não foi a vida de sua autora. Para Octavio Paz, Bishop foi mestre não somente "da difícil arte de dar voz ao silêncio" -obrigação de todo poeta, segundo ele- mas também da arte de ver, como um pintor. Saber olhar para as coisas teria livrado a poesia de Elizabeth Bishop da mania confessional. "Ela foi uma pintora da palavra", conclui um de seus biógrafos.

Colaborou a Sucursal do Rio

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