São Paulo, domingo, 24 de setembro de 1995
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Convalescente no Rio, Bishop se apaixona por Lota

MARILENE FELINTO
DA ENVIADA ESPECIAL

Elizabeth Bishop desembarcou no Brasil em dezembro de 1951, para uma visita rápida a conhecidos americanos. Entrou no país pelo porto de Santos, fato que descreve no poema "Arrival at Santos". Chegou ao Rio de trem, dois dias depois, onde era esperada na estação por Pearl Kazin, irmã do escritor Alfred Kazin, amigos de Bishop de Nova York. Kazin estava acompanhada de Mary Morse, uma bailarina americana, então amante de Lota de Macedo Soares.
Era dezembro, perto do Natal. Depois de experimentar o primeiro caju de sua vida, Bishop teve grave reação alérgica que a deixou de cama por um mês. As amigas, especialmente Lota, que ofereceu seu apartamento no Leme para a convalescente Bishop, cuidaram dela. Lota e Bishop apaixonaram-se perdidamente.
Nascida em 16 de março de 1910, Lota era uma milionária viajada, admiradora das belas artes e dominava línguas. Não sabia em que aplicar seu dinheiro nem para onde dirigir a ansiedade de uma personalidade inquieta. Era filha do político e jornalista carioca José Eduardo de Macedo Soares, dono do "Diário Carioca".
Lota mantinha com a família um relacionamento difícil, especialmente com sua única irmã, Maria Elvira Costallat de Macedo Soares (Marieta), que desaprovava sua opção sexual. Em depoimento ao jornal "O Globo", pouco antes de morrer, Marieta observa: "Mamãe aprovava qualquer maluquice de Lota. Foi a grande culpada por minha irmã ter sido daquele jeito, (...) metida a independente, mulher-macho (...)".
"Ela se dava muito com uma americana safada, a Mary Morse. Quando minha irmã teve um esgotamento nervoso e foi internada para tomar choque, ela forçou Lota a assinar um testamento deixando a Samambaia para ela e o apartamento do Leme para a Elizabeth. Mais tarde, Lota me pediu desculpas, mas não mexeu nos papéis."
Quando conheceu Bishop, Lota estava terminando de construir sua casa de Petrópolis. Convidou a poeta para viver com ela e construiu na casa um estúdio onde Bishop pudesse trabalhar. Em conversa com amigos, a poeta comentaria mais tarde esse convite: "Nunca na minha vida alguém tinha feito um gesto daqueles por mim, e então aquilo simplesmente significou tudo".
Segundo Stella Pereira, Lota, que se achava feia, encontrou em Bishop a encarnação do belo, tanto na sua pessoa quanto no seu talento de poeta: "Lota sempre foi incondicional com Elizabeth", diz à Folha. "Admirava o talento dela. Preocupava-se com o fato de aqui, no Brasil, Elizabeth estar fora do seu meio. Dizia que nos Estados Unidos ela era a segunda poetisa depois de Marianne Moore. Achava que aqui não havia gente do mesmo nível cultural dela. Elizabeth era a única de nós que tinha frequentado universidade".
Quanto a Elizabeth, encontraria em Lota o colo que sempre buscava em sua relação com as mulheres e os amigos em geral. "Elizabeth sempre precisava e procurava o apoio dos amigos", diz Emanuel Brasil. José Alberto Nemer, que conviveu com Bishop em Ouro Preto, comenta: "Emocional e fisicamente, ela era frágil e oscilante. (...) Quando ficava deprimida e invernava no álcool, era dramático. Passava dias seguidos fechada em seu quarto, sem ver ninguém. Ria e chorava ao mesmo tempo, em delírios, dia e noite".
Os anos vividos no sossego da Samambaia foram os mais felizes do relacionamento das duas. Foi uma época produtiva também para Bishop, que publicou seu segundo livro, "Poems" (1955), e ganhou fama definitiva ao receber o prêmio Pulitzer de poesia, em 1956.
A Samambaia era um idílio, famosa por suas variadas biblioteca e pinacoteca. Ali, Lota adotou um filho, Kylson, deficiente físico, de quem cuidou até ficar adulto. Depois o rapaz romperia com ela, por questões financeiras. Também Mary Morse adotou quatro crianças, que tirou dos asilos do Rio.
Tanto Morse quanto Carlos Lacerda tinham casas no mesmo terreno, que fora loteado e vendido por Lota a amigos. Petrópolis era o ponto de reunião do grupo que, segundo se comenta até hoje na cidade -a respeito, inclusive, do ex-governador-, mantinha "encontros íntimos com pessoas do mesmo sexo".
A casa da Samambaia foi o primeiro trabalho concreto de Lota. "Ela sempre dizia que queria trabalhar, mas não sabia em quê", conta Stella Pereira. "A fazenda Samambaia foi o início do sonho dela de fazer uma coisa maior, que aconteceria no parque do Flamengo".
Conta-se que Lota teve a inspiração de aterrar a praia do Flamengo quando estava um dia na sacada do apartamento de Lacerda, de frente para o mar. Lacerda endossou o projeto, e as obras começaram. Lota liderou o chamado "grupo do Aterro", na função de presidente da futura Fundação Parque do Flamengo.
Convidou o paisagista Roberto Burle Marx e o arquiteto Afonso Reidy para planejar a urbanização do terreno. Trocava ali a idéia de se construírem pistas de alta velocidade pela criação de espaços abertos e arborizados, destinados a parques, playgrounds e centros de atividades culturais.
A construção do parque, entre 1961 e 1965, consumiu boa parte do tempo e da saúde da incansável Lota, chamada a "dona do aterro". Desgastou também sua relação com Bishop, que se sentia abandonada pela amante e distante das intrigas políticas que envolviam a empreitada de Lota. Durante o período, Bishop viajou ao Amazonas e passou longas temporadas na casa que comprou em Ouro Preto.
A Fundação Parque do Flamengo foi extinta pouco depois da posse do governador Negrão de Lima, em 1965. Lota perderia o cargo na administração da obra e entraria na depressão que haveria de levá-la ao suicídio.
(MF)

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