São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 1995
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Liberalismo brasileiro

JOÃO SAYAD

Um breve resumo de uma longa história: em 1945 foi fundada a Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito), o primeiro passo da criação de um banco central que retirasse do Banco do Brasil suas prerrogativas de banco central que emite moeda e financia o governo.
Em 1964, a toda-poderosa revolução militar fundou o Banco Central com uma burocracia poderosa e um presidente com mandato mais longo que o do presidente da República -um banco central verdadeiramente independente.
Logo após a substituição do presidente Castello Branco por Costa e Silva, o então presidente do Banco Central informou ao marechal da duração de seu mandato e da sua independência, tendo sido demitido imediatamente.
Em 1985, 40 anos depois da criação da Sumoc e 22 anos depois da fundação do Banco Central, o novo governo descobriu não só que o Banco do Brasil tinha uma substanciosa conta corrente com a Fazenda Nacional, a chamada "conta movimento", como também o Banco Central tinha uma carteira de crédito rural, atividade típica do Banco do Brasil.
Em 1986, o governo extinguiu a "conta movimento" do Banco do Brasil. Em 1987, extinguiu novamente, o que dá um exemplo didático do que é pensamento dialético -o que acaba muitas vezes não acaba nunca.
Em 1994 e 1995, o Banco Central pratica juros muito altos, o que leva o Tesouro a propor que se crie um Tesouro Nacional independente, que não seja obrigado a pagar as taxas altas, que não são de sua responsabilidade.
Há 50 anos que se propõe e implementam medidas para que o país tenha um BC independente e acabamos com um BC dependente do Tesouro, segundo as críticas do mercado financeiro, ou dependente do mercado financeiro, como argumenta o ex-presidente Itamar Franco, um Banco do Brasil que faz tarefas do BC e um Tesouro que quer ser independente.
O que é o Brasil? Que mistério domina nossa história? Que tipo de software existe dentro de cada brasileiro, contendo língua, tradições, espírito comunitário, que produz uma história como esta? Pergunta muito antiga, de intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Roberto DaMatta. Os economistas abelhudos podem adicionar mais questões a esse enigma se refletirem sobre esta história de BC independente.
Parece que o software brasileiro dá sempre soluções abrangentes com propostas universais, racionais e completas para todos os problemas da sociedade, a partir de premissas lógicas e de leis "naturais" que passam a ser a forma em que devem se encaixar todos os brasileiros -famílias, empresas, partidos políticos, igrejas, outras instituições e até os excluídos.
É um programa lógico que produz soluções homogêneas, simétricas e arquitetônicas para o mundo. Um programa de memória curta, que sempre começa de novo, como se o país não tivesse história ou quisesse superá-la. Pensamos sempre em "construir" o país, em reformá-lo -como se estivéssemos tecendo uma renda, com desenhos rebuscados, que se repetem de um lado e de outro simetricamente. Um país barroco: depois das igrejas de Ouro Preto, construímos Brasília, poderíamos ter construído Versalhes.
É um software muito diferente dos softwares anglo-saxões. Lá, os problemas sugerem soluções apenas parciais, que se juntam a soluções de problemas anteriores às vezes de forma consistente, às vezes discrepantes. Os anglo-saxões foram construindo seus países da forma que podiam, sem grandes princípios, acomodando-se aos direitos naturais.
A Constituição dos EUA foi se moldando ao que era possível: porque os colonos pertenciam a uma variedade imensa de seitas e religiões diferentes, a Constituição consagra a liberdade de culto.
Na Inglaterra, nem mesmo uma Constituição foi escrita. O Parlamento vai fazendo leis, os tribunais constroem interpretações para cada caso. Duas sociedades verdadeiramente liberais -que foram sendo construídas, pragmaticamente, por sedimentação.
O software anglo-saxão desenha soluções como colchas de retalho, "patchwork" como dizem. Um programa prático e realista. Nada de reformas, nada barroco, muito liberal. As idéias e os debates são sugeridos pelos problemas, do mundo das coisas para o mundo das idéias. É um software interativo, do fato para a idéias, do problema para a solução.
O software brasileiro é muito mais ambicioso, absolutamente lógico e consistente, embora produza resultados tão pitorescos como a história do BC independente.
O software Brasil pode produzir qualquer resultado e atende a qualquer proposta, liberal, intervencionista, socialista ou corporativista. Será sempre uma proposta lógica internamente, ainda que possa ser totalmente inconsistente com as possibilidades reais de solução.
Agora, o software Brasil propõe a construção de uma sociedade e de uma economia liberais -com o Banco Central independente.
Mas é um liberalismo construído, decidido logicamente, muito diferente da história dos americanos e dos ingleses. É um liberalismo imperativo. A proposta liberal brasileira lembra o paradoxo do pai que chama o filho, muito dócil e obediente, e ordena: "seja desobediente. Como responder? Se obedecer, desobedece.

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