São Paulo, segunda-feira, 25 de setembro de 1995
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Corumbiara, conspiração? Chacina

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Quase a metade dos 14 milhões de trabalhadores agrícolas no Brasil não recebe qualquer rendimento ou até US$ 50 por mês. Não há problema de terra no Brasil. Os serviços de inteligência do Exército descobriram que a culpa pelos conflitos rurais no Brasil é do Sendero Luminoso peruano e suas conexões brasileiras.
Deixemos de lado essas tolices. Não houve guerrilha em Corumbiara. Foi chacina mesmo, confirmaram todos os laudos. As centenas de posseiros acampados em 300 dos 14 mil hectares da Fazenda Santa Elina -cujo documento de posse é ilegal-, foram vítimas, na madrugada do dia 9 de agosto, de cilada da Polícia Militar de Rondônia. Depois de tarde de negociação no dia 8 de agosto, a PM propôs aos ocupantes um adiamento de 72 horas para qualquer ação. Na calada da madrugada, atacava.
O juiz Glodner Luiz Pauletto, determinou, pasmem, uma ação de reintegração de posse imediata a um proprietário particular de terras pertencendo à União! Com base nesse mandado, no dia 9/8, entre 3h e 4h (segundo relatório da PM), em plena escuridão, a PM investe com bombas de iluminação e gás lacrimogêneo. Eram mais de 180 homens, alguns encapuzados do Centro de Operações Internas (COI), como se fossem enfrentar combatentes.
Quem era o "inimigo"? Famílias, homens e mulheres, simples, com suas crianças. Instalados com seus pobres pertences, cujos restos destruídos encontramos no acampamento depois de dois quilômetros de caminhada pela mata. O "armamento" encontrado entre os posseiros: algumas velhas espingardas, espetos de bambu, galhos detidos por um pequeno grupo de "segurança" que pode ter revidado ao ataque e tiros dos PMs. Mas a multidão de ocupantes -entre 800 e 1.200- eram pessoas desarmadas, indefesas.
O que se seguiu naquela madrugada é indescritível. Os homens, mãos amarradas nas costas, foram prostrados de cara no chão, no meio do acampamento. Foram pisoteados, espancados com paus e alvejados com tiros nos pés e pernas.
As mulheres separadas, cem crianças enfiadas numa caçamba do caminhão como gado (há fotos) assistindo os horrores perpetrados contra seus pais. Depois, os próprios posseiros (sob coronhadas e tiros) foram obrigados a transportar 300 de seus companheiros amarrados e os jogaram mortos-vivos em caçambas de caminhão. Ficaram detidos no Ginásio de Esportes de Colorado, os feridos sem nenhuma assistência.
Só no dia 11, depois da visita de várias delegações do governo e oposição, do Congresso e da sociedade civil, os detidos foram liberados e feitos os exames de corpo de delitos dos torturados.
Ouvi e gravei no hospital de Vilhena 30 relatos de idosos e jovens espancados, baleados no pé ou no tórax. Os sete cadáveres que ali vi tinham sido abatidos com tiros a curta distância, na nuca e nas costas, fraturas provocadas por escopetas. Entre os 10 posseiros mortos (inclusive uma menina de sete anos), 7 foram execuções. A morte dos dois PMs, ato criminoso, não está ainda claramente caracterizada. Podem ter sido alvejados durante o ataque.
O que aconteceu até agora? O ministro da Justiça, Nelson Jobim, se deslocou a Porto Velho, reuniu-se com o governador Waldir Raupp e determinou à Polícia Federal apresentar relatório, que comprova os fatos aqui relatados. O governador, responsável por autorizar a ação da PM, exonerou seu comandante.
O inquérito da Polícia Civil não dará em nada, visto a precariedade de recursos técnicos e a submissão da maioria do Judiciário aos latifundiários. Os PMs que torturaram e assassinaram os posseiros continuam em seus postos, tranquilíssimos: serão investigados por seus colegas e "julgados" pela excrescência do foro especial da Justiça Militar. Ninguém será punido (como no Carandiru), escrevam em seus caderninhos.
O Incra, que deverá desapropriar a Fazenda Santa Elina, mesmo depois desses horrores, recusa-se a dar prioridade a alojar as famílias por causa da ocupação. Apesar de condenarmos o recurso à violência armada em conflitos sociais, deveria ser reconhecido que ali impera regime de terror, imposto pelos latifundiários e seus jagunços armados, impune. Violência a julgar e condenar só posseiros, as maiores vítimas.
Não espanta que no dia 21 de agosto, na ONU, em Genebra, a Habitat Internacional denunciou esses fatos na Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, por desrespeitar a resolução 1993/77, adotada em 11/3/1993 pela Comissão de Direitos Humanos (com o voto do Brasil).
Essa resolução, incorporada em relatório a essa reunião por meu colega, El Hadji Guisse, relator especial das Nações Unidas sobre direitos à habitação, caracteriza despejos forçados como violação flagrante desses direitos e reconhece as populações rurais como grupo vulnerável a violações de direitos econômicos, sociais e culturais. A chacina de Corumbiara desrespeita e fere ainda inúmeros direitos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 1992.
Um governo democrático não pode tolerar despejos forçados, assassinatos e torturas de populações indefesas que querem apenas trabalhar a terra. O presidente FHC, na sua fala de 7 de setembro, ao definir que "direitos humanos, esse é o novo nome da luta pela liberdade e pela democracia", assumiu um grave compromisso com eles.
Melhor fariam todas as autoridades governamentais pôr em prática essa política. Em vez de fantasias conspiratórias das Forças Armadas, melhor apressar assentamentos e assegurar o acesso à terra dos trabalhadores rurais.

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