São Paulo, terça-feira, 2 de janeiro de 1996
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Deus e Brooke Shields levam Agassi ao topo

MARTHA SHERRILL
DA "ESQUIRE"

Era uma manhã nublada e chuvosa em Las Vegas quando a jornada até a atriz Brooke Shields começou. O jatinho particular estava coberto de chuva do deserto. Enquanto olhava pela escotilha, Andre Agassi levantou o dedo médio e deu uma risadinha. Um fotógrafo da revista "Sports Illustrated" estava na pista. Na véspera, tinha dito alguma coisa que deixara Agassi irritado. Ele fez menção aos velhos tempos, a pior fase de Agassi, sua juventude desperdiçada.
"Trabalho dez vezes mais do que ele", disse Agassi suavemente, sacudindo a cabeça pelada, "e tem a coragem de falar de algo que eu fiz quando era garoto".
Ele se esticou na poltrona de couro cinzento. Estava ruminando, filosofando. Seu belo traseiro se instalou em um assento. Suas pernas malfeitas de bebê descansavam em outro. Estava usando um agasalho de náilon preto e meias brancas e cinzas, malucas e feias. Na TV, às vezes, ele pode parecer meio mau. Mas agora, com seu crânio tosquiado e o ar indagador, parecia um monge inofensivo. Até seu cavanhaque fino e os brincos de prata -do tamanho de grossas alianças- não lhe emprestavam um ar ameaçador. E ele dizia as coisas mais estranhas.
Sua juventude não foi desperdiçada, disse. Não se arrependia de nada. Não acreditava em remorso. Arrependimento, para ele, "o transforma naquilo que você é hoje". Portanto, se ele tivesse remorso, estaria orgulhoso. A menos que ele não estivesse feliz com o que é hoje. Mas ele está. E muito.
Ele é "a maior estrela do tênis no planeta", escreveu um jornal americano após mais uma vitória em um torneio. Também é um homem de 25 anos com jatinho e piloto particulares. Diz que precisa do avião para economizar energia.
Ele compete semana sim, semana não, com jogos de exibição no meio. Quando vence, o que tem ocorrido ultimamente, ele enrola sua camiseta Nike folgada, a atira para o ar e mal espera para ver se uma adolescente histérica ou um homem de meia-idade a pegou.
Sem parar para nada, exceto para olhar seu relógio do Exército suíço, aceita outro troféu absurdo, abre um largo sorriso, balbucia comentários profundos para a imprensa e, quase de imediato, toma uma ducha, muda de roupa e vai para o aeroporto local, sobe ao céu e acaba -ele gosta de adivinhar o minuto exato em que vai chegar à sua porta- nos braços de seu grande amor, Brooke Shields.
Durante anos, Agassi parecia decidido a desperdiçar seu talento. Era famoso por comer porcarias, não treinar, engordar. Corriam histórias sobre seus sets "entregados", derrotas propositais e contusões encenadas. Ele era profissional desde os 16 anos e, aos 23, parecia exausto. Contundido e vindo de uma série de derrotas, foi abandonado por seu técnico. Abandonado como um fracasso.
"Talvez eu tenha sido recompensado cedo demais", disse. "Surgi numa época em que o tênis estava precisando de outro americano. Fiquei famoso antes de realizar grandes feitos. Fazer anúncios para a Nike e a Canon, sem nunca ter vencido um torneio do Grand Slam, deixou uma impressão ruim: só imagem, sem conteúdo."
Andre jogou tênis pela primeira vez aos 2 anos e meio, com uma raquete que o pai, Mike -um armênio nascido no Irã, professor de tênis e ex-boxeador-, amarrou-lhe à mão. Aos 4, jogou com Jimmy Connors. Aos 5, sua família mudou para uma casa com quadra de tênis. Aos 6, tendo passado a maior parte da vida olhando por cima de uma rede, Andre tinha os movimentos de Agassi: bata na bola cedo e bata com força.
"Papai me ensinou a jogar", diz Andre. "Nunca pensei em fazer outra coisa. Quando você é pequeno, tudo o que conhece é o que vê à sua volta, e tênis era tudo o que eu via. Por que iria querer fazer outra coisa?"
Andre começou a jogar em torneios aos 7 anos -cedo até para o tênis- e venceu suas nove primeiras partidas. A cada dois fins-de-semana, sua família pegava o trâiler, viajava até o sul da Califórnia -dez horas para ir, dez para voltar- e se hospedava toda em um quarto de motel, para que as crianças -Rita, Phillip, Tami e Andre- jogassem em torneios juvenis, onde Agassi encontrou, pela primeira vez, Pete Sampras, Michael Chang e Jim Courier.
Quando Andre foi mandado à academia de Nick Bollettieri, na Flórida, depois da oitava série, levou um choque ao descobrir o quanto poderia se sentir mal. No famoso centro de tênis, pôde desafiar grandes jogadores de sua idade -logo entrou para o grupo de protegidos de Bollettieri, com Aaron Krickstein e Jimmy Arias-, mas sentia saudade de casa.
"Odiava aquilo", diz. "Odiava crescer na Flórida, a 5.000 km de casa. Mas o único jeito de sair da academia era ter sucesso. Isso foi minha inspiração: ir tão bem que acabaria escapando."
E, embora Andre achasse que virar profissional seria sua fuga, não se sentiu melhor. Mudava o visual, especialmente o cabelo. Primeiro raspou a cabeça; depois deixou crescer um rabo-de-cavalo; depois o tingiu de louro. Em um jogo na Flórida, apareceu usando jeans, batom e lápis nos olhos. E tinha furado as orelhas.
Ele se escondia, se disfarçava. Por dentro, continuava o mesmo -competitivo e perfeccionista-, mas, por fora, estava perdido.
No final do primeiro ano, era o 91º do ranking. No fim do segundo, 25º. Em 1988, seu terceiro ano no circuito, tornou-se o número três. E foi nessa época que ele começou a perguntar aonde tudo isso o levava. Mais tarde, Andre encontrou Deus e converteu-se à Meadows Fellowship Church, no oeste de Las Vegas. No circuito, ele se encontrava com Michael Chang para estudar a Bíblia. Também falava de religião com a imprensa. Hoje, ele é mais reservado. Não sente mais "necessidade de escorar-se tanto em Deus".
"A fé é uma coisa importante. Acho que o que me faz sentir bem a respeito de toda essa loucura é a sensação de paz que me dá minha compreensão cada dia maior do desígnio de Deus para mim."
Em 1990, o desígnio de Mike Agassi para Andre fora realizado. Ele se estabilizou entre os dez primeiros do ranking -era o quarto no fim do ano- e ganhava mais de US$ 1 milhão por ano só em prêmios. Mas estava inquieto. Os anos carregando a sacola de tênis pelo mundo, cercado por técnicos, empresários e estilistas tinham se tornado um fardo interminável.
Quando não estava jogando seu melhor tênis, achava que não merecia vencer. "Era uma coisa de perfeccionismo", afirma. Quando, finalmente, se sentiu bem para jogar em Wimbledon, depois de faltar por três anos, foi bem -chegou às quartas-de-final em 1991 e venceu em 1992. Nesse mesmo ano, sua grande amiga Barbra Streisand o chamou de "mestre zen". Mas esses êxitos não representavam muito para ele.
A relação de Agassi e Bollettieri sempre teve altos e baixos -certa vez, ficaram um ano sem se falar-, mas o fim surpreendeu a todos. Foi em 1993, quando Agassi começou a sentir uma tendinite no pulso direito e perdia jogo após jogo. Engordou com doces. Dormia muito. Pesava 68 kg ao se tornar profissional, agora estava com 82 kg, e "Sports Illustrated" noticiou que suas coxas se tocavam.
A notícia de que Bollettieri estava deixando Agassi chegou ao tenista de quarta mão. Bollettieri, por fim, admitiu por carta que o estava abandonando, sim, para passar mais tempo com a família. A verdade veio pouco depois: ele trocou Agassi por Boris Becker.
"Ele é uma pessoa egoísta", diz Agassi de seu ex-treinador. "Ele achou que eu nunca mais jogaria bem. Mas não teve a coragem de dizer isso."
Mas, quando Deus fecha uma porta, como Andre diria, outra se abre magicamente. Duas coisas aconteceram: ele começou a fazer psicoterapia, e Brooke Shields entrou no filme. Eles foram apresentados por Lyndie Benson, mulher do saxofonista pop Kenny G.
"Ela sempre achou que havia uma simpatia entre nós", diz Shields. "Não chego a dizer que fiquei encantada, mas não pus muita fé." Shields rodava um filme na África e, ao receber uma carta de Agassi, respondeu por fax. Em pouco tempo os dois trocavam faxes dia sim, dia não, durante meses. "Não podíamos nos ver", ela conta. "Então, era uma forma estranhamente privada e pessoal de se encontrar."
Depois que ela voltou da África, os dois se telefonavam todo dia, durante seis semanas, até se encontrarem, em dezembro de 1993. Shields diz que, na época, já estava apaixonada por Andre, mas ainda estava insegura, certa de que não daria certo. Não era a diferença de idade -Shields é cinco anos mais velha-, mas o que ela chama de "meu retrospecto ruim".
O pulso de Agassi se recuperava quando ele voltou à competição, no começo de 1994. Estava jogando bem e venceu seu primeiro torneio em Scottsdale, no fim de fevereiro, mas sentia que lhe faltava algo. Sua vida pessoal era satisfatória -tivera algumas namoradas antes, mas nada como Shields. Contratara um treinador para cuidar do peso e estava, enfim, comendo decentemente. Mas seu jogo continuava imprevisível.
Ele fez uma lista de vários nomes e convidou o tenista Brad Gilbert para almoçar -sem lhe contar o porquê. Gilbert escrevera um livro, "Vencer Jogando Feio", e era conhecido por dizer o que pensa e ter opiniões fortes sobre a competição. Gostava de dar conselhos. Os dois conversaram informalmente sobre o tênis de Agassi e Gilbert não conseguia deixar de dar sugestões. No dia seguinte, os dois estavam na quadra treinando.
Gilbert deu a Agassi uma nova estratégia, uma nova metodologia. Ele não esperava melhorar o ponto forte de Agassi -"poucos batem na bola tão forte e profundo quanto Andre", diz-, mas queria aperfeiçoar seus pontos fracos. Mas o caminho do aprendizado também pode ter derrotas. Agassi perdeu feio no Aberto da França e no Volvo Championship, em Washington -seu nono torneio consecutivo sem vitória. Ele imaginava se seu novo planejamento daria certo. E, como fez tantas outras vezes na vida, mexeu no visual. "Decidi cortar meu cabelo."
A virada veio semanas depois.
Em Toronto, Agassi venceu o Aberto do Canadá, com Shields na arquibancada. Agassi gostou de sua presença. Na vitória no US Open, em setembro, ficou com Shields em uma casa em Manhattan. "E, o que é mais estranho", recorda, "dormi como nunca na véspera da final".
Enquanto a imagem de Agassi -quente, talvez perigosa- atrai adolescentes e pré-adolescentes de volta ao tênis, Pete Sampras representa algo bem diferente. Na verdade, ele é mais discreto que Agassi na quadra, representa uma volta ao classicismo e à reserva. Ele se veste de branco. Ele moldou seu jogo no de Rod Laver. E, até o Aberto da Austrália deste ano -quando chorou durante um jogo com Courier-, mostra pouco de suas emoções ou de sua personalidade na quadra. E muitos acham que Sampras é melhor.
O mundo do tênis torce menos por um ou outro e mais por um duelo glorioso entre os dois, que dure anos. Pelo menos, mais tempo que entre Bjorn Borg e John McEnroe. Com 24 e 25 anos, Sampras e Agassi estão a alguns anos do auge de suas carreiras, que, dizem, costuma chegar no tênis por volta de 27 ou 28 anos.
No fundo da limusine que o leva do aeroporto de Nova Jersey para Manhattan, Agassi parece pequeno -como perdido numa caverna escura- e jovem, como uma criança com um cavanhaque falso e brincos. A seu lado, na poltrona de couro preto, uma grande caixa branca, uma máquina de fazer pão que ele trouxe de sua casa em Las Vegas para dar a Shields.
Os dois têm um romance público, mas não como Liz Taylor e Richard Burton -misturando bebidas e jogando cinzeiros. É até difícil imaginá-los brigando.
À medida que a limusine se aproxima de Manhattan e da casa de Shields na rua 66, a mente de Agassi devaneia. "Não a vejo há dez dias", diz. Sorri, tranquilo. Enquanto se coça, olha ansioso pela janela. "Mesmo que ela não fosse atriz", disse, "ainda seria importante tê-la na minha vida".
A limusine chega dois minutos antes da hora estimada. Agassi abre a porta antes de ela parar e desce. No porta-malas, apanha várias sacolas. Parece um estudante que chegou de férias. Ele desaparece na casa por alguns minutos e depois reaparece, batendo na janela do carro e apontando. "A máquina de pão!" Ele a pega, sorridente como se estivesse em casa.

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