São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
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Autor de 'O Mundo de Sofia' retorna ao romance filosófico

JOSTEIN GAARDER

Nossa longa viagem para a pátria dos filósofos começou em Arendal, uma antiga cidade portuária no sul da Noruega. Atravessamos de Kristiansand até Hirtshals a bordo do Bolero, e não há muito a contar sobre a viagem pela Dinamarca e pela Alemanha. Tirando Legoland e o gigantesco porto de Hamburgo, tudo o que vimos foram rodovias e pequenas propriedades rurais. Somente quando chegamos aos Alpes é que as coisas realmente começaram a acontecer.
Tínhamos um trato, meu pai e eu. Eu não ficaria irritado quando tivéssemos de viajar longos trechos antes de pararmos em algum lugar para dormir, e ele não fumaria no carro. Para agradar a ambos, decidimos que faríamos muitas pausas para ele fumar um cigarro. Essas pausas são o que tenho de mais vivo na memória de toda a viagem até a Suíça.
Elas sempre começavam com uma pequena palestra do meu pai sobre algum tema que lhe ocorria à direção do carro, enquanto eu, no banco de trás, lia um gibi do Mickey ou jogava paciência. Na maioria das vezes tratava-se de alguma coisa que tinha a ver com mamãe. Quando não, ele discorria sobre algum de seus temas prediletos.
Desde que voltara à terra firme, depois de muitos anos no mar, ele se interessava, por exemplo, por robôs. Até aí nada de extraordinário; em se tratando de meu pai, porém, a coisa não parava por aí. É que ele estava plenamente convencido de que um dia a ciência conseguiria produzir seres artificiais. Não esses idiotas robôs de metal, que ficam acendendo luzinhas verdes e vermelhas e falam com uma vozinha oca. Não, meu pai acreditava que um dia a ciência ainda iria produzir gente mesmo, seres pensantes como nós, só que artificiais. E tem mais: no fundo ele já achava que todas as pessoas eram artificiais.
- Somos bonecos vivos -ele costumava dizer, principalmente depois de ter bebido umas duas ou três doses.
Em Legoland, eu o surpreendi pensativo diante dos enormes bonecos feitos de peças de Lego. Perguntei-lhe, então, se ele estava pensando em mamãe. - Imagine se de repente tudo isso ganhasse vida, Hans-Thomas -disse ele. - Imagine se, de uma hora para a outra, todos esses bonecos saíssem andando no meio dessas casinhas de plástico. O que nós faríamos?
- Você está louco -limitei-me a dizer, pois eu estava certo de que os outros pais que visitavam Legoland com seus filhos não diziam essas besteiras.
Decidi pedir-lhe um sorvete. Eu sabia que o melhor momento para lhe pedir alguma coisa era quando ele começava a externar suas idéias malucas. Acho que ele tinha a consciência um pouco pesada por estar sempre me amolando com esses assuntos; e quando meu pai está com a consciência pesada, sua tendência é ser mão aberta. Eu já ia abrindo a boca para pedir o sorvete, quando ele disse: - No fundo somos todos figuras de Lego, só que vivas.
Meu sorvete estava garantido: meu pai finalmente começara a filosofar. Queríamos ir para Atenas, só que não para passar férias de verão: em Atenas, ou em algum outro ponto da Grécia, queríamos procurar mamãe. Não tínhamos certeza de encontrá-la; e, caso a encontrássemos, não tínhamos certeza de que ela voltaria conosco para a Noruega. Mas tínhamos de tentar, dizia meu pai, pois nem ele e nem eu podíamos suportar a idéia de ter de passar o resto de nossas vidas sem ela.
Mamãe tinha nos deixado, papai e eu, quando eu tinha quatro anos. É por isso que continuo a chamá-la de "mamãe". Quanto a meu pai, aos poucos eu o fui conhecendo melhor, e um dia não me pareceu mais adequado chamá-lo de "papai".
Mamãe quis sair pelo mundo para se encontrar. Meu pai e eu podíamos até entender que a mãe de um garoto de quatro anos se sinta perdida algum dia. E demos a ela todo o nosso apoio nesse projeto de se reencontrar. Só que eu nunca consegui entender por que ela teve de ir embora para realizar seu desejo. Não consegui entender por que ela não pôde fazer isso dentro de casa mesmo, em Arendal, ou então por que não se contentou com uma viagem até Kristiansand. Meu conselho para todos os que querem se encontrar é de continuarem bem onde estão. Do contrário, é grande o risco de se perderem para sempre.
Já fazia tanto tempo que mamãe tinha ido embora que eu já nem me lembrava muito bem de como ela era. Só sabia que era muito mais bonita do que todas as outras mulheres. Pelo menos era o que dizia o meu pai. Ele também dizia que quanto mais bonita uma mulher, tanto mais difícil era para ela se encontrar.
Desde que mamãe desaparecera, eu a procurava por toda a parte. Toda vez que passava pela praça do mercado de Arendal eu achava que de repente ela ia aparecer bem na minha frente; e quando visitava minha avó em Oslo, meus olhos não se cansavam de procurá-la. Mas nunca a encontrei. Só a revi quando meu pai trouxe para casa aquela revista grega de moda. Lá estava minha mãe: na capa da revista e também na matéria de dentro. As fotos mostravam muito bem que ela ainda não tinha se encontrado. Isso porque não era minha mãe que estava retratada ali: as fotos mostravam claramente que ela tentava parecer outra pessoa. Meu pai e eu tivemos muita pena dela.
Minha tia-avó tinha trazido de Creta a revista de moda. Na Grécia, segundo ela disse, a revista com as fotos de mamãe estava exposta em todas as bancas de jornal. Era preciso apenas atirar alguns dracmas sobre o balcão para levá-la para casa. Achei essa idéia um tanto estranha. Aqui na Noruega a gente vinha procurando mamãe por todos esses anos e lá na Grécia ela sorria para todo mundo na capa de uma revista.
- Diabos ... como é que ela foi entrar nessa? -perguntou meu pai, coçando a cabeça. E, embora tivesse ficado irritado, ele recortou todas as fotos e as pregou na parede do quarto. Lindas fotos de alguém que se parecia com mamãe mais do que qualquer outra pessoa, achava ele.
E foi então que meu pai decidiu que tínhamos de viajar para a Grécia para procurá-la.
- Temos de tentar trazê-la de volta para casa, Hans-Thomas -disse ele. - Se não fizermos isso, o meu medo é que ela naufrague nessa aventura de moda.
Não entendi muito bem o que ele quis dizer. Eu já tinha ouvido falar de barcos e navios que tinham naufragado, mas não sabia que as pessoas também podiam naufragar em aventuras. Hoje sei que todo mundo deve ter muito cuidado com elas.
Quando paramos num posto de estrada perto de Hamburgo, meu pai começou a falar sobre o pai dele. Eu já conhecia a história toda, mas aqui, com todos aqueles carros alemães passando por nós a alta velocidade, era outra coisa. É que o pai do meu pai era alemão. Hoje não há nada de excepcional nisso, pois os filhos de alemães são gente como qualquer outra. Mas para mim é fácil falar. Eu não tive que sentir na própria pele o que é crescer sem pai numa pequena cidade do sul da Noruega.
Acho que o fato de estarmos na Alemanha motivou meu pai a falar sobre os pais dele.
Todos sabem que não é fácil conseguir alguma coisa para comer em tempos de guerra. Minha avó também sabia disso quando pegou a bicicleta e foi para Froland colher uvas-do-monte. Naquela época ela tinha 17 anos. O problema é que um pneu da bicicleta dela furou.
Esse passeio para colher uvas-do-monte acabou sendo um dos acontecimentos mais importantes da minha vida. Talvez soe um pouco estranho dizer que o acontecimento provavelmente mais importante da minha vida se localize mais de 30 anos antes do meu nascimento; mas, se naquele domingo minha avó não tivesse tido um problema com o pneu da bicicleta, meu pai nunca teria nascido. E, se ele não tivesse nascido, eu também não teria tido chance alguma.
O que aconteceu foi que minha avó, com o cesto cheio de uvas-do-monte, teve um problema com o pneu da bicicleta lá em Froland. É claro que ela não tinha levado ferramenta nenhuma para consertar o pneu furado; e, mesmo que tivesse tudo o que fosse necessário, dificilmente ela teria conseguido remendar o pneu sozinha.
Foi então que um soldado alemão passou pedalando pela estrada. Embora fosse alemão, ele não era um sujeito dos mais belicosos. Aliás, ele foi até muito cordial com aquela jovem, que não ia conseguir levar para casa seu cesto cheio de frutinhas. E para completar a cena, ele tinha consigo todos os apetrechos necessários para remendar a câmara de ar do pneu.
Se meu avô tivesse sido um daqueles perversos infames, como eram chamados todos os soldados alemães baseados na Noruega naquela época, ele simplesmente teria passado pela minha avó e nem teria parado. Mas é claro que não foi isso o que aconteceu. (...)

Trecho do livro "O Mistério das Cartas" (título provisório), de Jostein Gaarder, a ser publicado pelo Cia. das Letras
Tradução de JOÃO AZENHA JR.

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