São Paulo, domingo, 7 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A esquerda e um novo Estado

TARSO GENRO

Toda a história do Direito e do Estado no Ocidente girou em torno da tradição romana que desenvolveu a distinção essencial entre Direito Público e Direito Privado. Essas duas grandes árvores da genealogia do Direito promoveram uma concepção de Estado, uma cultura política e uma relação entre Estado e sociedade civil cujos limites as Constituições democráticas sempre trataram de demarcar rigidamente.
Aponto três fatos históricos que exigem da esquerda (cuja utopia redentora baseou-se principalmente na posse da máquina estatal) uma reflexão muito mais ousada:
1) O indivíduo "incluído", que emerge da fragmentação pós-moderna, da revolução midiática e telecomunicativa, pode vincular-se ao universal (ou auto-excluir-se no trabalho "telecomutter"), sem vínculos de classe, pois ele tem meios (computadores) e informações (redes) para ser potencialmente mais "livre" e também menos "coletivo" e "público" do que o seu ascendente, o cidadão do Iluminismo;
2) O aumento crescente da exclusão social gera legalidades alternativas ("zonas liberadas" pelo crime, comunidades ecológicas, grupos comunitários e religiosos, por exemplo) que obrigam o Estado, incapaz de gerar políticas públicas de inclusão na sociedade formal, a negociar acordos "ilegais" de convívio social para manter um mínimo de legitimidade;
3) A reação social causada pela exclusão, pela fragmentação, a emergência de novos modos de vida comunitária (que buscam na influência sobre o Estado o resgate da cidadania e da dignidade social do grupo) fazem surgir uma nova esfera pública não-estatal, não-subordinada também às relações mercantis, que promove ações de co-gestão com o Estado, dissolvendo os interesses privados que operam na sociedade civil, no crivo do interesse público.
Surge, então, um novo Direito Público como resposta à impotência do Estado e dos seus mecanismos de representação política. Um Direito Público cujas regras são às vezes formalizadas, outras não, mas que ensejam um processo co-gestionário, que combina a democracia direta -de participação voluntária- com a representação política prevista pelas normas escritas oriundas da vontade estatal.
Os exemplos, com maior ou menor potência decisória, podem ser citados à saciedade: desde os conselhos administrativos -abertos à sociedade- oriundos do Estado de bem-estar, os conselhos tutelares e ambientais até as comissões interinstitucionais de saúde no país, e um exemplo de Porto Alegre, o Conselho do Orçamento Participativo, originário dos conselhos de co-gestão pública disseminados na cidade. Nessas novas estruturas de poder, em que estão presentes os agentes do Estado e as representações das comunidades, as suas decisões podem ter caráter vinculante, ou seja, subordinar o governo político.
Esses traços de um novo Direito Público, que se legitima pela participação direta, não propõem a derrubada do Estado atual. Nem propõem uma simples auto-reforma do Estado pela via burocrático-administrativa. Ao gerar uma nova zona "gris" entre o Estado e a sociedade, a nova esfera pública não-estatal reduz o Estado onipotente limitando a sua lógica espontânea (ditada pela força dos monopólios) e aumenta o espaço decisório real da sociedade civil.
As decisões desse novo centro de composição de interesses e organização dos conflitos não são decisões compreensíveis pela ótica pura do privado, embora transitem interesses de sujeitos privados. Nem são decisões "puras" do Estado já que este, induzido ou pressionado, assume a redução do seu arbítrio agindo segundo o interesse público construído fora do âmbito estatal.
As consequências para a esquerda dessa nova situação histórica não são pequenas, pois atualizam de forma revolucionária o paradigma de Berlinguer. Propõem a fusão, num só conceito, da virtude da luta com a virtude do governo. Chamam a que o partido transformador seja, ao mesmo tempo, uma organização de luta e de governo.
Assim, na direção do Estado esse partido não pode e não quer paralisar o movimento social: incorpora-o num novo espaço público, para co-gerir um Estado que é estruturalmente hostil, pela sua organização e burocratização, às demandas cada vez mais urgentes e complexas dos excluídos e da sociedade formal, que passam a se reconhecer como interlocutores.
A difusão rápida da informação, a possibilidade de apreensão pelo Estado das demandas de uma enorme constelação de sujeitos sociais, a chance de consultas diretas à cidadania por meios eletrônicos, a possibilidade de controle (por parte da sociedade) das estatísticas e das próprias atividades (ou "inatividades") do serviço público, criam alternativas para um novo tipo de Estado.
Todos esses elementos, colocados à disposição da humanidade pelos novos padrões tecnológicos, tensionam no sentido de que as barreiras burocráticas e de poder, hostis ao cidadão comum, possam ser dissolvidas num novo Direito Público.
Creio que não seria demais dar uma ampliada no conceito do velho Bloch: uma utopia verdadeiramente concreta deve estar em andamento como forma de resistência medular à barbárie, cuja derrota por um Estado radicalmente democratizado será então definitiva.

Texto Anterior: DÁ QUEM QUER; MÚSICA DE MOTEL; FRASE AMBÍGUA; VINGANÇA MALIGNA
Próximo Texto: A paz no Líbano
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.