São Paulo, terça-feira, 9 de janeiro de 1996 |
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Políticos vêem a cultura como velha doente
ARNALDO JABOR
Que pensam os políticos e muitos ministros de áreas técnicas sobre a criação brasileira? Quase todos têm uma visão portuguesa de que a cultura precisa de caridade ou ajuda. Ninguém pensa em cultura no Brasil como um ser vivo. E a idéia de ajuda leva ao desejo de intromissão e controle. Vejamos algumas nuances. 1 - Políticos figurativos - São inteligentes e liberais até a hora em que se fala de cultura. Aí, perdem o rumo, entram em angústia. Eles detestam a coisa fluida da arte. Odeiam o abstrato. Um quadro de Antonio Dias, por exemplo, provoca pânico. Querem pegar o objeto, carimbar vias, exigir certidões, clareza. Eles têm horror da "forma das coisas desconhecidas" como diria Shakespeare. Querem a figura. Há muitos no PT, todos do PC do B, muitos no PFL e PSDB. Político brasileiro é acadêmico e figurativo. 2 - Políticos anti-utópicos - Ninguém entende que a cultura tem de ser fecundada e não financiada. Os políticos tinham de criar instrumentos e órgãos que buscassem se extinguir, por desnecessários. Como pais que ensinam os filhos a serem independentes. Mas não conseguem. São aliados dos burocratas dos guichês. O guichê é a dor do artista dependente, a proteção do burocrata e a lojinha de favores de políticos. Através do guichê, passam todos os rituais do clientelismo cordial. O guichê é a portinhola do fisiologismo. 3 - Kafkas e macartistas - Surgiram depois da onda das CPI's. Misturando fobia e correção, transformam todo projeto numa impossibilidade. Só criam decretos em forma de labirinto, com tantas garantias contra desvios, que qualquer lei perde sua função de estímulo. A lei Rouannet foi assim. A gestão atual do Ministério conseguiu melhorá-la, mas, quando foi sancionada, era impossível de ser aplicada. Um burocrata me disse, na época: "Se fosse fácil de aplicar, não tinha graça..." A lei vira um fim em si. A arte passa a existir para garantir a dificuldade da lei. Na cabeça do político médio, o artista é uma espécie de marginal que tem de ser vigiado em seu sórdido desejo de criar. O ideal para eles seria um cinema sem filmes, um balé sem danças, um teatro sem peças. De onde vem esta idéia, num país de corruptos, de que o pobre diabo do artista é um assaltante? Dos funâmbulos portugueses do século 15? 4 - Esquerdistas da cultura. (Os vingadores) - Estes políticos acham que "amam" o povo, e, portanto, concluem que não pode haver cultura porque o povo passa fome. Slogan: "Se não há pão, para que arte?" Neste raciocínio, talvez o fim do balé "Corpo" acabasse com a miséria no Vale do Jequitinhonha. Gritam de fonte alta: "O Piauí sofre, mas, em compensação, o Jabor não filma mais!" 5 - Esquerdista da cultura tipo B (a forma) - São seletivos em termos de arte. Toda complexidade é "alienação". São patrulheiros estéticos do formalismo. Para o povo, só coisas simples, claras. Eles me lembram uma milionária carioca que redecorou a casa toda e botou Picassos na sala e Vitalinos no quarto das empregadas. 6 - Políticos machistas - Acham que arte é coisa de viado. Dizem que esta frase é de Mário Covas. 7 - Empresários sem poesia - Jamais aplicam em cultura, apesar das leis novas. Acham que cultura é o vaso de Murano que a bicha decoradora mandou a mulher dele comprar para a casa pós-moderna do Morumbi. Falam com orgulho, mostrando o vaso ao amigo da Bolsa: "Quer ver o que é arte? Arte é isso!" 8 - Tecnocratas "hamlet" - Vivem do medo e da indecisão. Nunca têm coragem de decidir em seu nível. Sempre esperam à instância superior que espera a instância superior e assim por diante. Para eles, nada anda. Odeiam a simplicidade. Se o mundo fosse simples, eles perderiam o empregado. Na época da Embrafilme, eles viviam da fome dos cineastas. Era preciso que houvesse cineastas carentes para que houvesse funcionários. Eles nos queriam vivos, mas em agonia, para que não perdessem o emprego. A Embrafilme gerou uma fornada de cineastas infantilizados e de produtores-despachantes que não conheciam o mundo real do mercado. 9 - Políticos críticos (de cinema ou outra arte) - Eles têm gosto próprio. Alguns, por exemplo, só gostam de filmes de ação. Senadores e deputados berram: "Rambo é legal; mas este negócio de filme da arte tem de acabar!" 10 - Políticos de fino gosto - São poucos, mas existem. Só gostam de filme estrangeiro. Adoram Bergman, filmes búlgaros e iranianos. Sabem tudo sobre Tarantino ou Almodóvar. "Filme brasileiro para quê? Já tem novela..." Se os críticos esquerdistas da cultura são típicos dos ministérios econômicos, o burocrata fino é típico do Itamaraty. Cultura para eles, só Ming ou Gobelins. Toleram, no máximo, um Aleijadinho. 11 - Os regionais da cultura - Arte e criação só de micro-regiões. É o pessoal do bumba-meu-boi contra a arte urbana. A cultura tem de ser "descentralizada" (adoram esta palavra) e ser bem pobrezinha e precária para existir como metáfora de nossa miséria mambembe. Slogan preferido: "Abaixo Mallarmé! Viva o Maculelê!" 12 - Afilhados da arte - Sempre que algum deputado ou senador tem de empregar o filho incompetente de algum compadre, grita: "Ele sabe fazer o quê? Nada? Então, manda para a Cultura!" Cria-se uma geração de afilhados sem rumo que atravancam as fundações artísticas e as secretarias de cultura dos Estados. Cabide também é cultura. "Que que o senhor é?" "Bem, eu era assassino em Maceió. Agora sou chefe do Departamento de Literatura e Semiologia". 13 - Literatos engajados - Para estes políticos, a arte é um ornamento que enfeita o triunfo político. Muitos vão ser escritores ou poetas para construir um prestígio que facilite eleições ou postos bem pagos. Para eles, a literatura engajada é aquela que ajuda a descolar bons postos no exterior. Escrevem muito. Gostam de nossas lendas e folclore. Conhecem como poucos a beleza da vida rude de nossos homens do interior, mas vivem em postos de Paris. Este tipo de literatura engajada na política foi inventada no Maranhão. 14 - Juristas implacáveis - Homens em geral muito velhos ou mulheres muito louras e com muito laquê e muito batom. Chamam-se em geral dr. Bevilacqua ou d. Margareth. Comem de marmita e dormem no almoxarifado. Estão nos ministérios há quarenta anos e falam muito em Gustavo Capanema. Para eles, nada pode. Tudo é ilegal. Os ministros penam em suas mãos. Destroem qualquer lei com a técnica da regulamentação. Exemplo: a Lei da Cultura de São Paulo, que Ricardo Othake criou, foi a melhor já feita. No governo de Covas, foi engavetada por motivos misteriosos. Nunca mais se falou disso. É isso aí. No Brasil, o Poder pensa que a cultura é uma senhora doente que tem de ser protegida para não morrer. Nos EUA, a cultura é uma adolescente criativa que tem de ser estimulada a viver. Precisamos de um banho americano nesta cultura portuguesa. Texto Anterior: Grateful Dead volta a fazer show este ano Próximo Texto: Deus Baal devora o mito de Bertolt Brecht Índice |
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