São Paulo, domingo, 14 de janeiro de 1996
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A METRÓPOLE DOS CARROS DE BOI

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um livro de fotos da São Paulo dos anos 30 feitas por um bom fotógrafo amador. "Saudades de São Paulo" seria "apenas" isso se o fotógrafo não fosse o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, 87, um dos mais importantes intelectuais do século.
"Saudades de São Paulo", que a Companhia das Letras lança no próximo dia 24, reúne 53 das fotos que Lévi-Strauss fez em São Paulo e na Baixada Santista nos anos 30, quando foi professor visitante da Universidade de São Paulo. A chamada "missão francesa", de que ele fazia parte, incluía também o historiador Fernand Braudel, o geógrafo Pierre Monbeig e o filósofo Jean Maugé.
Nove das fotos do novo livro já foram publicadas no mais extenso "Saudades do Brasil", editado na França e no Brasil (pela mesma Companhia das Letras) em 1994.
"Saudades de São Paulo" é, aliás, uma espécie de filhote de "Saudades do Brasil". Quando o antropólogo estava preparando este último, em 1993, concedeu uma entrevista à Folha em que dizia estar tendo dificuldades para identificar fotos que havia feito na capital paulista. Depois de ler a entrevista, o arquiteto e pesquisador Ricardo Mendes, 40, da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, escreveu a Lévi-Strauss e se ofereceu para ajudá-lo a identificar suas fotos paulistanas.
Seguiu-se uma longa troca de cartas entre os dois, em que Lévi-Strauss mandava as fotos e as informações de que se lembrava sobre elas, e recebia de volta a identificação, tão minuciosa quanto possível, do local fotografado.
Não houve tempo hábil para a inclusão dos textos de identificação na edição francesa de "Saudades do Brasil" (só na brasileira), mas a correspondência entre Lévi-Strauss e Ricardo Mendes foi o embrião do livro "Saudades de São Paulo", que Mendes organizou e enriqueceu com notas explicativas.
O livro acabou se viabilizando graças à aquisição dos negativos das fotos pelo Instituto Moreira Salles. O instituto co-editou o livro e fará uma exposição das fotos entre 30 de janeiro e 3 de março, inaugurando sua sede paulistana (leia reportagem nesta página).
Em seu prefácio a "Saudades de São Paulo", Lévi-Strauss relembra sua estada na cidade -morou na rua Cincinato Braga, no Paraíso- e fala de seu interesse pelo tecido urbano de São Paulo como uma aparentemente caótica (mas muito lógica) sobreposição de momentos históricos e culturais distintos. "Ele estava interessado na oposição entre as áreas desocupadas e o tecido urbano plenamente constituído", afirma Ricardo Mendes.
As fotos de Lévi-Strauss mostram uma cidade ainda dividida entre a vocação de metrópole e resquícios muito fortes de provincianismo. Uma cidade em que bois e cavalos retardavam o movimento dos bondes, e vilas de sobrados eram demolidas para dar lugar a arranha-céus. Uma São Paulo em que o vale do Itororó (por onde hoje passa a avenida 23 de Maio) era uma bucólica sucessão de chácaras e pomares, e em que o edifício mais alto, o Martinelli, era objeto de uma admiração quase supersticiosa por parte da população -admiração que aparentemente contagiou o antropólogo.
Ainda segundo Mendes, a transformação da cidade é tão rápida que daqui a dez anos seria muito mais difícil identificar as fotos de Lévi-Strauss. Sem algumas informações fornecidas pelo antropólogo, seria praticamente impossível localizar certas imagens. "Se ele não dissesse que morou na Cincinato Braga, teríamos dificuldades em descobrir que lugar era aquele. O desaparecimento físico na região foi completo. A esquina onde morou Lévi-Strauss, da Cincinato Braga com a Carlos Sampaio, está completamente desfigurada: é ocupada hoje por uma agência do Banco Econômico, um Pizza Hut, um prédio de consultórios médicos e uma editora de listas telefônicas."
Mas os dados fornecidos pelo antropólogo nem sempre eram confiáveis. Uma foto que ele dizia mostrar o bairro do Pacaembu, por exemplo, foi posteriormente identificada por Ricardo Mendes como sendo da Aclimação.
O pesquisador destaca ainda a preocupação de Lévi-Strauss com a documentação de material gráfico (cartazes, letreiros, pôsteres), algo não muito frequente nos fotógrafos desinteressados dos aspectos sociais e históricos. Há, no livro, uma fotografia de cartaz oferecendo terrenos à venda, outra de um anúncio de comício de Luiz Carlos Prestes, outro ainda, escrito em japonês, sobre ocupação de terras no Paraná.
Em termos técnicos e estéticos, Mendes define Lévi-Strauss como "um fotógrafo amador clássico, bem informado": "Seu pai era fotógrafo e pintor, e naquele período a fotografia amadora exigia certo conhecimento técnico".
Além de certas preocupações básicas de composição e enquadramento, o antropólogo possui, segundo Mendes, uma aguda intuição. "Ele tem, por exemplo, um termo ótimo para definir a São João: 'estaleiro gigantesco'. Teve também a sensibilidade de captar o lado interiorano do largo do Paissandu."
Não foi possível definir a localização de algumas fotos de Carnaval. De acordo com Mendes, essa localização "é uma questão de tempo", mas depende de uma pesquisa mais extensa, que inclui a reconstituição do caminho que era percorrido pelos desfiles na época.
"Agora que os negativos estão no acervo do Instituto Moreira Salles, dá tempo de fazer um trabalho de pesquisa mais apurado. Podemos procurar ex-alunos de Lévi-Strauss, rearticular os negativos em ordem cronológica e geográfica etc.", diz Mendes.
Além das fotografias, do prefácio de Lévi-Strauss e das legendas informativas de Ricardo Mendes, o livro contará com um mapa da cidade na época, identificando os pontos documentados nas fotos.
A Companhia das Letras promete reeditar ainda este ano, em nova tradução, um dos maiores clássicos de Lévi-Strauss, "Tristes Trópicos", em que ele narra suas investigações antropológicas em São Paulo, no Paraná e no Brasil central. No prefácio de "Saudades de São Paulo", Lévi-Strauss repete uma frase de Fernand Braudel: "O Brasil foi o grande período de nossas vidas". Ao que tudo indica, não foi só uma frase de efeito.

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