São Paulo, segunda-feira, 15 de janeiro de 1996
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A mulher de Ló

JOSUÉ MACHADO

Um repórter de rádio, desses que informam sobre a circulação de veículos na cidade, disse numa tarde melancolicamente chuvosa que o trânsito na Marginal do Tietê estava bastante parado. Sim, "bastante parado". Disse isso e a vida continuou fluindo serena. Para os mesmos, claro.
O que será trânsito "bastante parado"? Indicará carros parafusados no chão? Fixados com cola-tudo? Terão se petrificado? Isso aconteceu com a curiosa mulher de Ló. O bom Ló foi retirado de Sodoma com a família por anjos, porque o fogo divino ia assar os pervertidos sodomitas praticantes de coisas feias, mas nenhum dos retirantes poderia olhar para trás. A Senhora Ló olhou, desobediente, e virou estátua de sal. Castigo divino. Pode-se dizer que ficou bastante parada.
O acidental "bastante parado" resulta do uso duvidoso de "bastante" como sinônimo indevido de "muito". Como eles dizem que o trânsito está "bastante congestionado", querendo dizer "muito", saiu esse simpático "bastante parado". "Bastante" significa "suficientemente", embora os dicionários lhe dêem também o sentido de "muito". Nem sempre se pode substituir o advérbio "muito" por "bastante". Não fica bem. Uma criatura mais ou menos equilibrada não dirá sem pensar que alguém está "bastante doente", "bastante gripado", "bastante feliz", "bastante triste" ou que é "bastante gordo". Quanto é suficiente de cada uma dessas qualidades ou estados? O pobre "bastante" não merece a situação de degrau intermediário entre "pouco" e "muito", como pode perceber qualquer pessoa simples desde que pense um pouco e não seja do atuante grupo "é dando que se recebe".
Seria bom que os falantes, principalmente repórteres de rádio e TV, obrigados a falar de improviso, esquecessem o advérbio e também adjetivo "bastante". O "pouco" e o "muito" já são bastantes para eles.
A soma que divide
"Somou-se os dados" ou "somaram-se os dados", pergunta o leitor M. S. Magalhães, de São Paulo. Ele aponta esse "somou-se os dados" numa nota da Folha que fala de violência.
"Para se chegar ao número de mortes violentas ocorridas no fim-de-semana, somou-se os dados das quatro unidades..."
E pergunta: "Violência contra a língua também?"
Distração do redator, claro. Ele não teve intenção de ser violento. Ele ou o computador viciado. Um ou outro se esqueceu de que nesses casos de verbos subjugados pelo pronome "se" apassivador (somar + se), a palavra seguinte no plural é o sujeito, que exige o verbo no plural, como aprendemos em tenra idade.
Para ser original, "alugam-se casas", "preparam-se bons grampos", "vendem-se juízes, deputados, senadores, políticos, virtudes, picaretas, tomates, cargos, batatas, berinjelas." Coisas assim.
Portanto, "... somaram-se os dados...", que são plurais, equivalente a "os dados foram somados".
Não vamos contar nada para ninguém, mas o primeiro "se" do período destacado pelo dr. Magalhães -"Para 'se' chegar ao número..."- é tão útil quanto o grampo sivanal do embaixador e a pasta cor-de-rosa. O que ocorre com a frase se se tirar esse "se"? O mesmo que vai ocorrer com os denunciados pelo grampo e com os nomes da pastola rosa: nada, brisas, bulhufas, lhufas, nonada:
"Para chegar ao número..."
A frase fica limpinha, como limpos ficarão todos os envolvidos em todas as picaretagens e contribuições; alguns ainda receberão pedidos de desculpas:
"Perdoa-me por tua canalhice!"

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