São Paulo, terça-feira, 16 de janeiro de 1996
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95 foi o ano dos desacontecimentos políticos

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Brasil nos habita e 95 foi um ano de "desacontecimentos". A inflação foi um fato real, mas aconteceu em 94. O governo de FHC tem um timbre de terapia, já que ele tenta opor um "corte" aos desejos políticos neuróticos.
O principal "desacontecimento" do governo de FHC é que ele trouxe para o cenário a idéia de "processo". Sempre raciocinamos por urgência e calamidade. O voluntarismo vive entranhado na em nossa alma ibérica. O bonapartismo sorridente de FHC diz o quê? Que diz seu sorriso paciente? Fala de algo entre a confiança e o fatalismo, passa um otimismo conformado; há uma presença da morte em seu sorriso, há uma tinta sartreana que diz: "Se as reformas não passarem, que posso fazer?". O governo de FHC passa também a idéia de que existe um "não-fazer" político que pode funcionar mais que emergências messiânicas. Oswaldo Aranha dizia: O Brasil progride enquanto dorme (foi Oswaldo?). FHC diz que nem tudo é possível, que não adianta, por exemplo, se horrorizar com a miséria sem instrumentos para combatê-la. FHC quer também tirar o freio das coisas para que elas possam andar sozinhas.
Há governos frios e governos quentes. O de FHC é frio, sem dúvida. Não acredita em brados retumbantes. Esta frieza é sua maior contribuição.
95 (e o mundo em volta) nos trouxe também a consciência de que o poder se desmancha no ar. Collor já nos tinha dado esta riqueza, quando confiscou o dinheiro e fez a mímica psicótica de uma revolução radical. Collor desmoralizou a burguesia em seu próprio corpo. Collor também nos ensinou que a gafe e o ridículo habitam o poder. E que presidentes caem. Quando os bancos quebram, tudo fica mais efêmero. Este ano vimos bancos se evaporando. A "criação destrutiva" do capitalismo já está nos educando. O mercado tem uma dinâmica própria que destrói ilusões desejantes. As coisas ficam mais duras, porém mais claras.
A hipocrisia é suplantada pela inclemência, o jeitinho e a cordialidade passam a ser substituídos pela dureza dos interesses. Está se perdendo a velha e boa alma brasileira? Talvez. Mas, está se gerando uma esperança mais cínica.
95 foi também o ano dos vazamentos. Vazou o telefone do Sivam, vazou o Econômico, vazou Calmon de Sá, vazou a pasta rosa, vazou o bingo, vazou a igreja Universal. E tudo que vazou, nós já sabíamos. Foi o vazamento do já sabido. Sempre soubemos que bancos dão dinheiro a políticos, que banqueiros se dão bem e que em grandes negócios de 1 bilhão, rola gorgeta. O óbvio só choca quando dá bandeira. Ou seja, a realidade paralela da política tem de ficar paralela. Não se pode mais alardear a impunidade com arrogância. O coronelismo tem de ser mais discreto, agora. Quando ACM marchou contra o Planalto, errou. O tempo tinha passado.
Descobrimos em 95 que a pequena história se liga à grande história. Um grampo vagabundo num telefone movido pelo rancor de um policial, mudou a política estratégica na Amazônia, prejudicando interesses até do Clinton. Descobrimos que a "petite histoire" move mais o país que as grande causas, as grandes relações de produção. Hobsbawn diz na "Era dos Extremos", explicando as causas da Segunda Guerra, que os Aliados não queriam a guerra e que a maior razão da explosão do conflito não foram razões políticas maiores; foram duas palavras: Adolf Hitler.
No primeiro ano de governo, as neuroses foram decisivas para o ritmo de nosso atraso. FHC com sua "allure" de intelectual "du monde" provoca uma inveja com ranges de dentes. Ele conseguiu o sonho de todo pensador orgânico: dirigir um país. Uma esquerda tradicional não consegue acreditar nele. E assistimos a espantosa incapacidade de uma certa esquerda de cooperar com uma vitória. Quem vai ganhar? O ódio a FHC ou sua capacidade de seduzir inimigos? O ano que passou foi o ano do pêndulo entre a chantagem e a sedução. O "é dando que se recebe" e foi substituído pelo "morde e sopra" ou pelo "bem me quer, mal me quer". Além da inveja, tivemos o medo, a vaidade, o sadismo.
O ano que passou foi também o ano em que as palavras perderam força e as coisas começaram a imperar. A secular tradição portuguesa dos grandes conceitos, começou a ser minada pelo mundo dos objetos. O frango a um real fala mais que mil discursos. A população está com uma sensação de realidade palpável que não tinha há trinta anos. As coisas olham nosso nhenhenhém e riem de nossa ilusão de controle. Este foi outro ensinamento: o controle é uma ilusão.
Isto causa a erupção de um outro sintoma muito forte: a revolta da burrice.
A burrice se ergue no Brasil disfarçada de tudo: de bondade, de amor ao povo, de ciência, de cultura. A burrice é o ódio ao óbvio. As palavras são mais úteis aos burros que aos inteligentes. E os burros não querem abrir mão dos discursos fechados. Isto porque, em 95, descobrimos também que muitas coisas não têm solução. Que muitas realidades não se fecham e ficam abertas por toda a eternidade. O burro não tolera aberturas.
Também por sadia influência das coisas a idéia de brilho e glória dos intelectuais está sendo substituída pela idéia de competência. A performance sem competência não é nada. Nada é o talento sem aptidões. Desmaia um pouco o bacharel, nosso lado doutor, se bem que ele ainda mande muito em nossos garçons de costeletas.
Por influência da informática, do capitalismo financeiro internacional, o "saber europeu" está sendo suplantado pelo "serviços americanos". Esta a grande mudança: o fim da liderança intelectual da Europa. E como toda nossa ilusão sempre foi alimentada por verdades eurocentradas, talvez seja sadio um banho em águas novas, longe dos adjetivos e utopias do velho mundo.
O ano de 95 foi até a descoberta da velha Lei da Oferta e da Procura, uma coisa meio óbvia feito a lei da gravidade. Os consumidores estão pasmos com Newton diante da maçã.
O ano de 95 foi também ano do nascimento do Relator. Esta virou a figura mais importante da república. Diante dele todos se ajoelham.
Ele pode acabar com as reformas e parar o tempo.
Foi também o ano do "denunciado denunciante", aquele que é achado com a boca na botija e denuncia um outro e aí esquecem dele.
95 foi também o ano de chutar a santa. Foi o ano da grande gafe do século: Von Helde chutou a santa e destruiu uma igreja.
O ano de 95 foi também o que vimos a assustadora ausência de programa político concreto da esquerda tradicional. Diante da grossura neoliberal ou das tentativas social-democráticas ou sei lá que nome dar, ficaram presos em preconceitos religiosos e viraram soldados do corporativismo, como evangélicos. Alguém precisa chutar esta santa.
E, como diz o lugar-comum, tudo que aconteceu neste primeiro ano de governo, faz parte de uma luta entre o rural e o urbano, entre o velho e o novo (e o "novo" é um velho saber que a esperança tinha escondido). 95 foi o ano em que vimos que a história brasileira se fará mais pelo que se perde, do que pelo que se acumula. Somos o que sobrar de nós, depois da perda das ilusões. São os "desacontecimentos".
Agora, tudo isso escrito acima vira lero-lero (mais do que já é), se em 96 o governo não conseguir enxugar o custo do Estado brasileiro que já vai a mais de cem bilhões de dólares.
Se não conseguir, diz o sorriso de FHC, que podemos fazer? O Brasil "escolheu" o seu destino. E nos africanizaremos em paz.

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